13.5.05

Caminhos da América latina

Caio Junqueira

Os recentes acontecimentos em boa parte dos países latino-americanos permitem constatar que algo diferente e positivo vem acontecendo nesta parte do continente: a espontânea participação popular na deposição de governantes, independentemente da eventual boa situação econômica por que passe e também do apoio da elite dos países a esses processos.

Vamos a alguns exemplos. Na Nicarágua, a população, apoiada por 96 dos 152 prefeitos do país, pede a renúncia do presidente Enrique Bolanos. Motivo? A alta do preço das passagens de ônibus. Dois anos atrás, o então presidente da Bolívia, Sanchez de Lozada, foi expulso após um levante popular contra a sua política acerca de uma das principais economias do país, o gás. Basicamente, a população temia que futuros rendimentos originados pela exploração de produto não fossem revertidos para ajudar os pobres. A situação se agravou com o atual presidente, Carlos Mesa, que, pressionado sobre o mesmo assunto neste ano, chegou a apresentar carta de renúncia, mas recuou.

Evidentemente a revolta popular atinge também os supostos corruptos. Mesmo que a economia vá bem. No Equador, Lucio Gutierrez foi deposto depois de ter se livrado do processo de impeachment no Congresso e a Corte Suprema tê-lo absolvido das acusações de corrupção, isso mesmo com o país tendo tido crescimento econômico de 6,6 % e a menor taxa de inflação das últimas três décadas. Já no Peru, Alexandre Toledo é suspeito de falsificar assinaturas para obter o registro do partido que o elegeu. Seu governo, no entanto, apresentou taxas de crescimento econômico superiores a 4% nos últimos anos.

A leitura que se deve fazer desses, por que não, fenômenos sociais, é simples, direta e objetiva. Cansados de seus governos terem seguido à risca o Consenso de Washington, a agenda neoliberal, com a perda de poderes regulatórios para o capital privado, a perda de recursos financeiros para a aplicação em programas sociais (já que há metas econômicas a serem cumpridas e essas devem ser sobrepostas a, por exemplo, construção de hospitais) esses povos, finalmente, começam a se perguntar: E nós? O que podemos fazer se a economia vai bem e o povo vai mal ou, pior, se a economia nem vai tão bem assim mas a fixação pelos ditames do FMI e pelos elogios dos analistas econômicos cegam governantes afoitos pela histórica submissão às regras que vêm de fora?

O maior problema da receita econômica pré-pronta a nós apresentada nos últimos 15 anos não é propriamente o que ela diz, mas a inércia em buscar alternativas. Ao que parece, não há mais a necessidade de divulgar o pacto neoliberal, visto que ele já faz parte da realidade. É comum, normal e mecânico e se revoltar contra ele é ser louco ou atrasado.

Mas o que esses movimentos populares estão passando é justamente que o atrasado ou o louco é quem se adapta a esse pacto sem se ater aos resultados sociais que ele, conforme as promessas iniciais, iria apresentar.
Isso inicialmente ocorreu na Argentina, que sentiu, no final dos anos 90, que todo o crescimento econômico e glamour da dolarização cambial do início da década passada era balela. Veio a revolta, a crise política e hoje sim os argentinos têm um governo decente, autor de uma acertada readequação econômica firme e independente de regras internacionais financeiras. Além dos argentinos, outro país que se afastou do modelo neoliberal imposto foi a Venezuela, mas este é um caso específico, já que mistura economia com ideologia.

Hugo Chávez é, sem dúvida, o maior líder da esquerda latino-americana. Faz do seu discurso um ataque permanente ao grande idealizador do neoliberalismo, os Estados Unidos. Tem, todavia, a sorte de comandar um país com a quinta maior produção de petróleo do planeta, o que lhe permite abusar de sua verborragia sem que, ao menos a curto a prazo, haja uma represália econômica, já que, petróleo, todo mundo quer e todo mundo precisa.

Apesar de sua proposta de sistema econômico ainda ser obscura, uma vez que sinaliza para um modelo que reúna ganhos sociais com fluxo de capital privado, o fenômeno chavista começa a assustar os Estados Unidos pela contundência e força que tem no seu país. Nesta semana, o instituto Datanalisis revelou que 70,5% dos venezuelanos apóiam seu presidente. Um número excelente, em se considerando que ele governa o país há cerca de seis anos.

Fora do país, o chavismo começa a entrar nas facções políticas como símbolo de resistência, o que preocupa não só os Estados Unidos, mas os grandes grupos econômicos, em especial os de comunicação. No Brasil, não é segredo a ninguém a campanha que a Veja e O Estado de S. Paulo fazem para amenizar esse efeito, ao menos nas classes média e alta.

Chávez tem sim muitas credenciais de um mau político. É populista, demagogo, militar e exarcebadamente assistencialista. Porém, para entender o que ocorre na Venezuela e na América Latina é preciso recorrer às raízes históricas de um continente imerso em pobreza, dominação e exploração, onde o bolo, com seus rompantes de crescimento, nunca chegou a ser efetivamente dividido.

Ao que parece, a tradicional soberania do capital que sempre reinou nesta parte da América começa a se esvair e a fragilizar governos, em prol, quem sabe, de uma guinada do social. Na visão da secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, essa "instabilidade" ocorre porque muitos desses países são "democraticamente frágeis". Na realidade, fragilidade para ela siginifica desobediência ao estabelecido por Washington. Lula, nesse sentido, não comandaria um país frágil. Seu governo continua refém do capital e apartado da economia popular e das necessidades populares. Resta saber se essa não-fragilidade aos olhos norte-americanos será respaldada nas urnas no próximo ano.