2.4.09

"Foco é o crime financeiro e não o Congresso"
Caio Junqueira, de Brasília, Valor Econômico, 02/04/2009

O paulista Roberto Troncon Filho, 46 anos, é o chefe da Diretoria de Combate ao Crime Organizado (DCOR), o que lhe dá o status de número três na corporação a qual entrou em 1994. Fez toda a sua carreira na Superintendência da PF em São Paulo, onde atuou na Delegacia de Polícia Fazendária, de Repressão de Entorpecentes, de Repressão a Crimes Financeiros e no aeroporto internacional de Guarulhos. Chegou ao atual cargo depois que o delegado-geral, Luis Fernando Corrêa, assumiu em 2007.

Responsável direto por todas as operações de repressão a crimes financeiros do país, Troncon defende a mais recente delas, a Castelo de Areia. Avalia que há um desvirtuamento do seu enfoque financeiro para político em razão de uma estratégia de defesa da empresa. Critica ainda a atuação do delegado Protógenes Queiroz na Operação Satiagraha e disse que a PF ainda paga por seus erros, principalmente o de usar a instituição como plataforma para entrar na política. Ele ainda refuta as críticas de que a polícia recebe de altas autoridades brasileiras a cada operação deflagrada. Segundo diz, por pura "falta de informação".

Troncon também diz que ainda não chegaram à PF informações de irregularidades envolvendo os grandes bancos brasileiros. Acrescenta ainda que a estrutura de combate aos crimes financeiros deve aumentar com um projeto de lei que será encaminhado ainda neste ano ao Congresso, o qual permitirá que todos os Estados tenham uma delegacia especializada em combate a crimes financeiros. Hoje, somente São Paulo, Rio e Distrito Federal possui essas estruturas. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ontem ao Valor:

Valor: Nos últimos dias, Polícia Federal, Justiça Federal e Ministério Público soltaram notas afirmando que o foco da Castelo de Areia não eram os políticos, mas a Camargo Corrêa. Por que essa preocupação?

Roberto Troncon Filho: Me parece é que realmente ninguém leu a decisão do juiz nem os autos. Está claro que a operação trata de crime contra o sistema financeiro. O inquérito policial é todo desenvolvido para apurar essa remessa ilegal para o exterior e eventualmente sendo essa remessa uma forma de ocultação de dinheiro público, em razão dos indícios de superfaturamento constatado pelo TCU.

Valor: E como os políticos entraram na investigação?

Troncon: Há diálogos interceptados que tratam de valores destinados a financiamentos de campanha. Em alguns desses diálogos, pontualmente, há indícios de que parte desse dinheiro não seria declarado. Se isso for comprovado, realmente pode se tratar de financiamento ilegal e crime eleitoral. Contudo, a apuração de financiamento ilícito de campanha eleitoral não é objeto dessa investigação e nem poderia ser. A Justiça competente para apurar é a Eleitoral e se tratando de candidatos ou pessoas que ocupam cargos públicos atualmente eles teriam prerrogativa de foro ou então seria mandado para o próprio juiz eleitoral.

Valor: Então por que há menção a partidos políticos?

Troncon: Evidentemente que no curso de uma investigação, outros fatos relevantes, mas não relacionados diretamente ao seu objeto, devem ser considerados. Foi o que fez o delegado. Ele considerou que tinha um diálogo suspeito. Na verdade, não é prova de nada, é apenas um indício superficial de que pode ter havido algum problema no financiamento de campanhas.

Valor: O que fazer então com esses indícios?

Troncon: A PF vai destacar essas informações, somadas a outros documentos que forem eventualmente encontrados nessas buscas e encaminhá-las para análise da Justiça Eleitoral. É ela que tem condições de verificar sobre eventual financiamento não declarado.

Valor: Mas esse destacamento não poderia ter sido feito antes?

Troncon: Não deveria. Toda investigação tramita sobre segredo de justiça. Apenas Judiciário, Ministério Público e PF, que atuam no caso, podem ter conhecimento. Se fosse, por exemplo, um homicídio, seria dever parar a investigação para atuar a fim de que o crime não ocorra. Num caso como esse, está se tratando de fatos que, em primeiro lugar, são leves indícios de que pode ter acontecido algo de errado. E eles podem ser verificados posteriormente sem prejudicar o curso da investigação.

Valor: A divulgação desses indícios não pode levar a um entendimento de atuação política da PF?

Troncon: Se a polícia lá na época em que os primeiros diálogos suspeitos foram identificados -logo, em um período pré-eleitoral-, tivesse dado publicidade a isso, aí sim poderia ser acusada de politização. Porque se um fato como esse é divulgado momentos antes da eleição, não tem nada a ver com a melhor técnica investigativa e poderia estar servindo a interferir no processo eleitoral, o que não foi feito. A PF conduziu essa investigação por mais de um ano e ela só se tornou pública agora.

Valor: Por que então a repercussão passou a ser mais política do que financeira?

Troncon: O objetivo é fomentar essa discussão periférica para tirar a atenção do centro da investigação dos crimes financeiros, já que os resultados são bem robustos: houve prática de crimes financeiros por parte de determinadas pessoas que ocupam cargo de direção na construtora Camargo Corrêa.

Valor: O sr. acha que isso é uma estratégia de defesa da empresa?

Troncon: Certamente. Toda a mídia foi pautada por essa questão incidental que não é o objeto da investigação. Poderá ser de uma outra investigação que tramitará na Justiça Eleitoral, mas não é agora. Na decisão, o juiz menciona como questão periférica e subsidiária que há um indício de que pode ter ocorrido crime eleitoral e que isso poderá ser tratado mais adiante. E quem vai tratar é a Justiça Eleitoral. Os advogados de defesa têm acesso pleno a tudo. Se a prova no campo central está robusta, eu vou tentar jogar para o campo político. Foi o que eles fizeram. Esse debate hoje da mídia nada tem a ver com a investigação. O que acho injusto é que vários veículos deem repercussão a uma tese frágil.

Valor: O sr. acha que há uma tentativa de tirar o caso do juiz Fausto De Sanctis e, como políticos têm foro privilegiado, levar para o STF?

Troncon: Se a estratégia é essa está equivocada, porque essa investigação em momento algum apura crimes eleitorais e muito menos crimes praticados por pessoas com foro privilegiado. A representação do delegado tem cerca de 300 páginas. O tópico que trata dessa necessidade de melhor apurar se houve algum desvio eleitoral tem 10 páginas. E isso porque ainda reproduz alguns diálogos. O que o delegado escreve é que não há nenhum indício de direcionamento para beneficiar algum partido e que a Camargo Corrêa consta no TSE como doadora oficial de campanhas. Logo, para se acusar eventuais doações ilícitas, antes de qualquer outra providência, tem que ser levada ao conhecimento do TSE para verificação.

Valor: O sr. acha que houve alteração de conduta da PF entre a Satiagraha e a Castelo de Areia??

Troncon: No ano passado a PF realizou, salvo engano, 288 operações. A Satiagraha da forma como foi conduzida foi uma exceção absoluta. Foi uma investigação criminal dentre 288. Ela significa 0,003% do que fizemos e a imprensa tem batido que cometemos grandes erros. Se uma pessoa indevidamente se apropria de uma ação da instituição bem sucedida, eventualmente usa isso para fazer plataforma para se lançar na carreira política, o mérito é dele (fala do delegado que conduziu a Satiagraha, Protógenes Queiroz, que tem pretensões políticas). Mas se essa pessoa age de modo indevido, contrário a toda uma política e metodologia da instituição, aí a culpa é da instituição. É assim que a imprensa tem visto e acho isso injusto. Quando falamos da primeira fase da Satiagraha, o que houve foi, por parte do delegado, o desrespeito a uma série de normas construídas ao longo de anos de experiência e de boas práticas. Desrespeito a dogmas muito importantes para a imensa maioria dos delegados.

Valor: Quais?

Troncon: A atividade policial nunca é uma atividade de uma só pessoa, é de equipe. E o preço a pagar para compor essas equipes e fazer o trabalho que a sociedade espera é o anonimato, é não querer capitalizar para si indevidamente ações desenvolvidas por um grupo e pela organização toda. Isso é extremamente mal-visto por toda organização. Os grandes heróis da PF não são conhecidos do grande público. Em todos os grandes casos, é um grupo que atua, com escrivãos, papilocopistas, delegados, agentes e peritos. Sozinho não se ganha esse jogo. É um dogma. E esse dogma foi quebrado por esse delegado. Atuou de um modo absolutamente condenável dentro da instituição. A Satiagraha não foi erro de uma instituição, mas de uma pessoa que ao longo de uma determinada trajetória criou uma série de circunstâncias de modo ardiloso e muito bem pensado para criar um fundo de teoria de conspiração, que todo mundo conspirava contra a investigação para justamente manter-se fora dos controles que existem e ao final querer buscar uma plataforma política, que é o que ele está tentando fazer agora. Então não trate a atuação de um servidor policial, equivocada e indevida e que contraria principios métodos e dogmas consagrados na instituição com a atividade de toda a instituição. Na Satiagraha houve esse desvio de atuação. Na Castelo de Areia não teve.

Valor: O sr. acha que a PF paga pelos erros da Satiagraha??

Troncon: Paga. Porque uma pessoa pode até se eleger um deputado federal, senador da República, puxando para si, indevidamente uma atividade que é de um grupo, de uma instituição, que tem dogmas e princípios. Agora se ele erra aí é a instituição que paga o preço. Foi o que aconteceu.

Valor: Uma das acusações que surgem após cada operação da PF é de que há um Estado policialesco.

Troncon: Acho um absurdo. O modelo brasileiro é dos melhores do controle da polícia. A investigação é conduzida por uma instituição, supervisionada por outra, que é o Ministério Público, e ainda pelo Judiciário. A cada quinze dias o procurador e o juiz recebe relatório e acompanha tudo o que está acontecendo, diferentemente de outros países onde toda investigação é conduzida pelo Ministério Público.

Valor: Qual a razão das críticas então?

Troncon: Ontem mesmo vi um rapaz sem camisa preso por ter executado uma moça. Estava o
símbolo da polícia e o rapaz algemado sendo apresentado. Suponha que apareça um banqueiro preso sem camisa e algemado, o que tem de diferença entre os dois? A condição sócio-econômica do investigado. O Brasil, como tantos outros países, por tempos, tinha como tradição investigar pessoas de uma determinada camada social para baixo, não para cima. E isso provoca uma reação , que tem eco no Parlamento, em setores políticos e até mesmo em instâncias superiores da Justiça. No fato de ontem, não vi ninguém reclamando. Nenhum político, nenhum juiz de tribunal superior. É algo até natural, em razão dessa forma de interlocução que esses grupos organizados estabelecem com os poderes da República, com a imprensa. Isso cria uma situação díspar. O favelado, como não é representado por nenhuma organização ou grupo social organizado e também não tem dinheiro para contratar bons advogados. Ninguém vai falar pelo direito dele, mas o direito dele é exatamente igual ao do banqueiro.

Valor: O presidente do STF, Gilmar Mendes, costuma ser um crítico da PF. Como fica a instituição?

Troncon: Tenho admiração por ele, um magistrado de alto quilate com profundo conhecimento jurídico. Mas enquanto policial federal e cidadão, quando vejo algumas críticas severas acerca da atuação policial, me parece um pouco de desconhecimento, de falar sem uma maior reflexão sobre assuntos que, certamente, se tivesse pleno conhecimento sobre os fatos em que se manifestou no passado, a posição dele seria outra. Me sinto um pouco ressentido, acho um pouco injusto. E talvez a falha seja da PF em não ser mais pró-ativa e levar ao conhecimento dos magistrados e políticos o que verdadeiramente se passa e praticamos no dia a dia. A gente leva isso aqui muito a sério. Eu reputo as críticas mais contundentes, especialmente das altas autoridades da República, a um desconhecimento da realidade do que se pratica aqui no dia a dia e quais são os dogmas inarredáveis que temos para nós mesmos.

Valor: As principais operações de crimes financeiros pegaram doleiros em vez de banqueiros. Por que eles não costumam ser alvos?

Troncon: O doleiro hoje não é mais como nos anos 80, quando a instabilidade da economia forçava cidadãos de bem a querer preservar seus recursos comprando dólar paralelo, que até era permitido. Hoje ele é visto como aquele que atua à margem do sistema. Ou tem uma empresa de fachada, uma agência de viagem, ou está fora do sistema. Só que hoje os bons cidadãos não têm mais motivos para procurar um doleiro. Consegue proteger suas reservas, investe em fundo de variação cambial, por exemplo. Esse pessoal está fora do mercado de doleiros hoje em dia. Quem restou? Só os criminosos. Somente os criminosos. Agente público que obtém dinheiro por meio de corrupção, empresário que sonega tributos, narcotraficantes, traficantes de armas, contrabandista, traficante de pessoas. Por isso que a partir desta década se começou uma ação muito forte contra esse mercado negro de câmbio no país, que fomenta e dá meios e mecanismos para as organizações criminosas garantirem a proteção do patrimônio ilícito obtido por meio criminoso.

Valor: Mas não há bancos que atuam com doleiros para clientes que querem enviar recursos ao exterior livre de tributos?

Troncon: A PF investiga fatos, não pessoas. Não selecionamos nossos alvos, a lei não permite isso. As informações de crimes relacionadas aos grandes bancos do Brasil elas pura e simplesmente não existem. Sobre os grandes bancos, e estou falando com base em dados estatísticos, não tivemos nenhuma investigação. Nem no curso dessas investigações, e as fontes de informação são variadas: Receita Federal, CGU, TCU, Previdência, Comissão de Valores Imobiliários, entre outras tantas. Nem do Banco Central. Até porque suspeito que um grande banco tem muito a perder com dano à imagem. O que significa um segmento de privatre banking para Itaú, Bradesco, Banco do Brasil? É importante, mas nas operações totais é pequena. Agora, no dia a dia, e isso a gente trata com muita cautela, gerentes de determinadas agências bancárias que têm metas a cumprir de captação de recursos e tudo o mais e aí fica uma relação perniciosa porque, nesse afã de cumprir a meta e até de buscar progressão de sua carreira, ele começa a ir além do que a lei permite. Mas em nenhum desses casos se verificou uma ligação do comando da instituição, da diretoria. O que ficou provado ao mesmo tempo é que são ações pontuais ou de favores diretos que o gerente da instituição recebe ou até mesmo buscando essa projeção. A gente tratou com maior cautela pontualmente para circunscrever a conduta de quem a praticou, ao gerente e ao responsável local, e não levar para uma política institucional porque nunca foi provado.

Valor: E bancos estrangeiros?

Troncon: Houve um caso em que se se verificou uma atuação realmente pró-ativa do banco estrangeiro com seus representantes aqui. Na verdade ele desenvolvia segmento de private banking, mas direcionado para um publico brasileiro que tem dinheiro não declarado com origem ilícita. Eles promoviam esse serviço em que a pessoa abria uma conta e a movimentava sem sair do Brasil, algo totalmente contrário às politicas e leis brasileiras que regem o sistema financeiro. Nesse caso, os diretores foram indiciados e o recado que ficou é que, se outras instituições financeiras estrangeiras fizerem o mesmo, estão sujeitas a sofrerem ações cada vez mais duras.