20.10.05

A febre aftosa e as alternativas de modelos econômicos

Caio

A descoberta de focos da febre aftosa revela um caso evidente de contraste entre ideologia política-econômica e a vida real. Explico. A classe supostamente letrada do país tem uma ligação maior com setores à direita da classe política. Isso se comprova com a análise de resultados eleitorais de qualquer das últimas eleições. Maior concentração de riqueza, maior votação em grupos políticos vinculados à classe média e alta, como PSDB e PFL. Como exemplo, cito as eleições de 2004 em São Paulo, onde nos bairros mais afastados e pobres, como São Mateus e Guaianases, a candidata petista Marta Suplicy teve mais do que o dobro dos votos do tucano José Serra, ao contrário do glamour falido dos Jardins, onde ocorreu o inverso.

Pois bem, os setores ruralistas em geral são vinculados a partidos, em tese, de direita, com política econômica liberal e monetarista, que privilegia a produção e circulação de capital. Evidente que outro não poderia ser seu engajamento, visto que essas características são inerentes à sua atividade produtiva. Ocorre que a atenta observação dessa forma de condução macroeconômica deveria, às vezes, suscitar não o elogio e o incentivo de certos grupos econômicos _no caso, o ligado à terra_ mas, ao contrário, a revolta. E é aí que chega oa febre aftosa no rebanho bovino do país.

O atual governo segue a cartilha econômica dos anos FHC, que, por sua vez, seguiu o chamado Consenso de Washignton, com, entre outras medidas, política de metas inflacionárias e de superávit primário dentro de um padrão excessivamente liberal que interessa prioritariamente aos detentores de riqueza financeira e aos investidores de curto prazo. Nesse sentido, o ajuste a esse regime de metas leva a um bloqueio na liberação de recursos de modo que elas possam ser cumpridas. No caso da agricultura, e das conseqüências do freio na liberação de recursos, fica patente essa esquematização na análise da liberação de verbas deste ano.

Os primeiros recursos para a defesa sanitária em 2005 saíram no final de fevereiro. Foram R$ 37 milhões. Depois disso, vieram R$ 40 milhões no final de abril. Não como dinheiro em caixa, mas como limite para movimentação e empenho (ou seja, para contratar a despesa planejada). No total, saíram neste ano R$ 91 milhões de R$ 169 milhões previstos para a defesa agropecuária. O resultado está aí: perda de rebanho e de credibilidade com importadores da carne brasileira.

O curioso no episódio é justamente o fato de que o setor ruralista é, em sua maior parte, é, junto com outros grupos, forte apoiador dessa política econômica contigenciadora. Chegam a considerá-la o único setor louvável nesse governo, uma vez que o país apresenta excelentes índices de emprego, controle de inflação e produção de riqueza. É, paradoxalmente, onde se encaixam as suas convicções com os estafantes e repetitivos discursos que Lula faz em defesa da economia. Ledo engano. Visto sob a ótica internacional, a boa fase por que passa a economia é sofrível e não acompanha a ótima fase que vive a conjuntura nacional. Em uma lista de crescimento econômico entre 2003 e 2005 de quinze países periféricos, ocupamos a 13ª posição. Ou seja, apesar do mesmo impulso, o crescimento foi diferente.

O que revolta em todo esse cenário é que fomos vítimas de um estelionato quanto ao programa econômico eleitoral do então candidato Lula em 2002. Se esse governo possui relevante inclusão social em alguns programas, como de transferência de renda e de educação, por outro lado foi covarde em não acatar a tradição do pensamento desenvolvimentista brasileiro de esquerda que foi incorporado em importantes documentos políticos do PT como “Outro Brasil é Possível” e o “Programa de Governo 2002”. Essa covardia até pode ser compreensível do ponto de visto do risco que correria o país frente a uma mudança drástica, haja vista que, bem ou mal, houve alguma coisa de melhora na cartilha tucana dos anos 90, como a estabilidade da economia. Mas a que preço? Vale mais um país estável economicamente, mas que não cresce e se enche de filas de desempregados?

Olhar para o lado, nesses casos, pode ajudar. Na Venezuela, o governo Chávez investe em um modelo de desenvolvimento endógeno, com enfoque para a produção para o consumo local e nacional e o incentivo às vocações de cada região e a organização de cooperativas. Não que esse seja o modelo que o Brasil deveria adotar, já que cada país tem sua realidade. Nosso país vizinho, por exemplo, tem um histórico de dependência crônica do petróleo e precisa ajustar sua realidade econômica à sua demanda. No caso, diversificar sua economia.
Virando o olhar para o Oriente, vê-se outra alternativa econômica adequada à realidade intrínseca do país: a China. Lá, ao contrário da América Latina, que caminhou para uma economia de mercado como resposta a crises econômicas graves, os chineses se moveram ao capital por razões políticas: a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, e o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, deixaram horror ao esquerdismo por suas características opressoras. Aliados a isso, veio o colapso soviético e a conseqüente insegurança no Partido Comunista Chinês quanto à rigidez burocrática.

Apesar das experiências ao redor do mundo, por aqui a ousadia econômica passa longe. Percebe-se, no comportamento deste governo desde a transição que uma eventual inovação no campo econômico poderia acabar de vez com todo o projeto petista de poder, visto que, se falhasse, seria a legenda eternamente condenada como autora da perda da estabilidade conquistada nos anos 90. Mas, enquanto se mantiverem as amarras ao já reduzido Orçamento brasileiro, não só a febre aftosa, como outras demais conseqüências dessa política, serão parte da vida do brasileiro. Em 2006, o eleitor poderá optar pela libertação ou não desses entraves. Poderá ser a oportunidade para aniquilar os mais de dez anos de estabilidade sem crescimento, e de, por exemplo, focos de doenças no campo em um país predominantemente agrário.

14.10.05

As cidades mais petistas do Brasil

(publicada no Valor Econômico)

Caio

Entre esses 4.637 municípios em que o PT está organizado, há um colégio eleitoral excepcionalmente petista: dez cidades espalhadas por sete Estados de todas as regiões do país têm uma média de 9% de filiados petistas em seu eleitorado. A média nacional é de 0,68%. Os números foram obtidos pelo cruzamento da lista de filiados petistas por cidade com a distribuição municipal do eleitorado. Os petistas dessas cidades votaram maciçamente no primeiro turno no candidato do Campo Majoritário, Ricardo Berzoini, salvo dois deles, que preferiram Valter Pomar. A manutenção do grupo que comanda a legenda há dez anos, porém, não embaça a postura crítica dessas localidades sobre os rumos do partido no governo. O PT surgiu nesses lugares em circunstâncias muito distintas das de sua fundação, em 1980, pela efervescência operária-sindical no ABC paulista. Hoje tornaram-se os verdadeiros ‘grotões’ petistas. São municípios pequenos, de no máximo 12 mil eleitores, e economia predominantemente agrária. A única semelhança com o petismo de 25 anos atrás é a intensa presença de movimentos sociais.

Com 12 em cada 100 habitantes filiados ao PT, Pontão (RS), a 300 km de Porto Alegre, no noroeste do Estado, é a cidade brasileira com maior número de petistas do país em relação ao eleitorado. É lá que está localizada a Fazenda Annoni, onde, há 20 anos, foi feita a primeira ocupação do Movimento dos Sem Terra (MST). O antigo latifúndio foi transformado em glebas de terra onde hoje vivem 400 famílias que participam ativamente das atividades petistas. Nas reuniões, decidem desde temas cotidianos, como o melhor atendimento da rede de transporte rural, até quais devem ser os candidatos do PT a vereador e a prefeito. Foi assim que se decidiu pela pré-candidatura do atual prefeito, Delmar Zambiasi, de 38 anos. Filho de empregados rurais que trabalhavam na Annoni, Zambiasi nasceu na fazenda e participou da ocupação. Apesar de não mais morar lá, parte de sua renda -além dos R$ 4 mil que recebe da prefeitura- vem da Annoni, com a plantação de soja e um "camping" construído nos 30 hectares que recebeu no assentamento às margens de uma bela represa. Tem churrasqueiras, piscina de azulejo (um toboágua será colocado para o próximo verão), campos de futebol e vôlei e chalés com diárias a R$ 50. A data da ocupação da Annoni- 29 de outubro - transformou-se em feriado municipal depois que Pontão elegeu, em 1996, o primeiro prefeito sem-terra do país, que foi reeleito em 2000 e passou o cargo em 2004 a Zambiasi. A bandeira do MST tem local privativo no gabinete do prefeito e na Mesa da Câmara, que também é presidida por um sem-terra. Na parte urbana do município, uma pequena avenida se estica por um quilômetro na cidade, com a prefeitura ao meio delimitando a luta de classes que os petistas afirmam haver: à esquerda da prefeitura, ficam as terras dos assentados; à direita, as propriedades das 22 famílias cujas rendas somadas são maiores que a renda do restante da população pontãuense.

A tensão do conflito agrário já foi maior na época das primeiras ocupações, mas sempre reaparecem no período eleitoral. Às vésperas da eleição, os assentamentos ficam em vigília contra os chamados "ranchos", grupo de pessoas supostamente enviados por grandes proprietários rurais para trocarem cestas básicas por votos. Após as últimas vitórias eleitorais, houve atentados: uma escola e um posto de saúde foram incendiados na Annoni em 1996 e 2001, respectivamente. Neste ano, após a terceira vitória consecutiva do partido nas urnas, as ameaças por ora se restringem ao prefeito que, em uma das primeiras realizações de seu governo, desapropriou 10 hectares de uma fazenda colada à parte urbana da cidade. A crise do partido, segundo o prefeito, ainda não chegou à cidade. "As pancadas sobre o Lula não chegaram aqui e talvez nem cheguem", afirma. O otimismo pode ser explicado pelos projetos sociais do governo federal que chegam à cidade, como a distribuição de 180 bolsas-família, 60 cestas básicas e a construção de 400 habitações rurais.

Nas reuniões em que avaliam a conjuntura, os petistas locais apontam as alianças "com a direita" feitas nas eleições de 2002 e o esquecimento "do povo" após assumir o governo como principais causas da crise. "Uma coisa errada neste governo foi não governar com o povo . Perdeu uma grande oportunidade. Agora, não vejo outra saída a não ser fazer como o Hugo Chávez, que o povo segura no governo para ele fazer as mudanças", diz Odacir Valério, vice-presidente eleito do PT. No âmbito nacional, Pontão elegeu Valter Pomar com mais de 90% dos votos. No segundo turno, direcionarão essa ampla votação para Raul Pont. Os petistas de Pontão atribuem a força do partido no local às gestões dos prefeitos assentados, que, de acordo com eles, priorizaram necessidades locais como alargamento e manutenção das estradas rurais, formação de uma satisfatória rede de transporte escolar, reforma do posto de saúde e a ampliação da eletrificação rural. No entanto, o modo de operar dos petistas de Pontão são contestados pela oposição, que os acusam de privilegiar os assentados em detrimento do restante da população. Também apontam um empreguismo exagerado e falta de transparência administrativa. De acordo com Rudimar Banaletti (PTB), também assentado rural, mas duro oposicionista, desde que o PT assumiu a prefeitura em 1996 o número de cargos de confiança passou de 160 para 300, ocupando hoje 56% da folha de pagamento do município. "Não é que o PT é maioria aqui, é que a maioria aqui não se interessa e nem quer se comprometer", diz Benaletti.

Localizada na região do Bico do Papagaio, extremo norte do Estado do Tocantins, Sampaio é a segunda na lista das cidades mais petistas do país . No início dos anos 80, o padre Jozimo Tavares chegou ao Bico do Papagaio, onde fez trabalhos de evangelização com trabalhadores rurais que se encontravam imersos em intensos conflitos por grilagem de terra. Integrante da Comissão Pastoral da Terra e adepto da Teologia da Libertação, instalou-se para pregar na cidade que margeia o rio Tocantins e foi importante centro de distribuição dos produtos que chegavam do porto de Imperatriz (TO). Ali estava o embrião do PT na região, fruto da junção entre a Igreja e os trabalhadores rurais. Desde então, o petismo local só cresceu. Na comparação, por exemplo, com São Bernardo do Campo (SP), cidade natal do partido, Sampaio tem mais de dez vezes a proporção de petistas. Esse crescimento, porém, ocorreu paralelamente ao declínio e ao esquecimento econômico da cidade, iniciados pela construção de estradas federais nas proximidades no fim dos anos 80 e nos anos 90, tirando do rio e da cidade sua importância estratégica. Todo esse quadro não foi acompanhado por Jozimo, que foi assassinado por fazendeiros em 1986, pouco tempo depois de sua chegada ao local. Em meio à maior crise da história do partido, a terra de Jozimo cobra da cúpula petista um olhar para o passado com a consulta às bases, pilar formador da legenda. "A crise pegou todo mundo de surpresa aqui. Ninguém imaginou tudo isso. A gente sempre trabalhou pelo partido, com poucos recursos, no sufoco, e fomos esquecidos. Todas as informações que tivemos foram pela imprensa. Ninguém falou conosco, parece que a gente trabalhou à toa. Construímos o partido com camadas populares, com setores realmente comprometidos com a transformação do país. Queríamos que esse debate fosse ampliado, que fossem ouvidos os que estão há 25 anos na luta, os que se sacrificaram. Queríamos ser ouvidos. Isso tudo que está acontecendo é muito triste", afirma Carlos Luna, 33, integrante da Executiva municipal de Sampaio. De acordo com ele, nos encontros regionais que precederam as eleições internas do PT houve um consenso de que a antiga cúpula envolvida nas denúncias de corrupção deve se explicar às bases enquanto a nova cúpula que vencer as eleições neste domingo deve expulsar os petistas comprovadamente envolvidos."Tem que ter coragem para chegar e dizer às pessoas que elas não correspondem mais às expectativas."

Avaliação semelhante tem José Maria Rigo, presidente recém eleito do diretório de Floriano Peixoto (RS), o quinto município com mais petistas do Brasil. "O partido cresceu muito rapidamente e foram entrando pessoas descompromissadas com as raízes do PT", afirma. Apesar das críticas dos dirigentes de Sampaio e Floriano à forma como partido cresceu e ao esquecimento da consulta à militância, em ambas as cidades o Campo Majoritário, tendência que controla o partido há mais de dez anos, venceu as eleições com a quase totalidade dos votos. Os sampaienses deram a Ricardo Berzoini 95% dos votos, enquanto os florianos o elegeram com 90%. Rigo, porém, nega ter havido em sua cidade a filiação em massa incentivada pelo Campo em nível nacional. "Aqui o crescimento foi automático, decorrente das políticas públicas que implementamos". As melhorias a que o dirigente se refere são a finalização da eletrificação rural e a construção de poços artesianos em quase todo o município de Floriano Peixoto, medidas importantes em se considerando o caráter disperso deste pequeno município gaúcho, distante 300 km de Porto Alegre, com população basicamente descendente de imigrantes alemães e poloneses espalhados em 16 comunidades em um raio de 3 km. Antigo distrito de Getulio Vargas (RS), o petismo local nasceu com o movimento de pequenos agricultores contra a barragem de Machadinho (RS), cuja construção alagaria 30% da área do então distrito. Emancipada em 1997, a cidade passou por duas administrações petistas, mas perdeu a última. A alguns quilômetros dali fica Xavantina (SC), que apresenta traços parecidos com Floriano Peixoto. Terceira no ranking de filiação petista, vive da agricultura e pecuária. A população de 4.100 habitantes se espalha por 15 comunidades e descende, na maior parte, de imigrantes italianos, poloneses e alemães. Lá, o PT nasceu do movimento sindical agrário e, ao contrário de Sampaio e Floriano Peixoto, nas eleições internas Valter Pomar venceu Ricardo Berzoini.

Longe do ambiente agrário e do sul do país, também houve espaço para o forte crescimento do PT. Foi em Icapuí, cidade cearense limítrofe com o Rio Grande do Norte que tem economia focada na pesca de lagosta. Com quase 100% de filiados pescadores, é a quarta com mais petistas do Brasil, fato esse explicado pela cidade ter vivido sob a égide do partido durante cinco gestões seguidas. Por ter colocado a totalidade das crianças da cidade na escola, a cidade foi finalista do prêmio Município Amigo da Criança, promovido pela Unicef. Nas eleições de 2004, perdeu a prefeitura para o PSDB, mas na linha da administração Luiz Inácio Lula da Silva de abrigar petistas derrotados nas eleições, acomodou dois de seus principais líderes no governo federal: os ex-prefeitos José Airton, que foi para a Associação Nacional de Transportes Terrestre (ANTT), e Dedé Teixeira, que virou assessor da Secretária Especial de Aqüicultura e Pesca. Sobre a crise do partido, os petistas pescadores dividem suas opiniões. Uma parte culpa o deputado federal e ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, por todas as práticas contrárias ao que a sigla previa. Outra parte crê que, ainda que esses erros possam ter ocorrido, foram feitos devido a uma "boa causa". Nas eleições internas, os votos se dividiram entre o vencedor Berzoini e a deputada gaúcha Maria do Rosário.

Se a história destas cidades revela a propagação do partido por meio de suas bases históricas, há também nas cidades mais petistas do país flagrantes de incoerência com esses traços. É o caso de Iaras (SP), única paulista na relação e nona no ranking. Distante 282 km a noroeste de São Paulo, este pequeno município com cerca de 3.500 habitantes viu o PT ser criado já em um cenário nacional de partido grande e de filiação em massa. "Sou político aqui há muitos anos. Em 2001, analisei o quadro e, acreditando que o Lula seria eleito presidente, fundei o partido. O PT nunca existiu antes aqui", afirma o bancário Edílson Xavier, ex-PTB que rompeu em 2000 com antigos correligionários. Ele trava na Justiça um embate por uma nova anulação das eleições de 2004, em que perdeu para um antigo aliado do qual fora chefe-de-gabinete na primeira gestão após a emancipação do município, em 1992. No Estado vizinho do Mato Grosso do Sul, em Caracol, décima no ranking, algo parecido ocorreu. O partido foi fundado em 1994 em decorrência de uma greve de professores do setor público municipal. Hoje, a cúpula é formada por pecuaristas. Em contraste com os feudos petistas, as cidades com o menor número de filiados da legenda não estão nacionalmente distribuídas. São município maiores, com população que varia entre 50 mil e 100 mil habitantes, concentrados no Nordeste. Paragominas (PA), é a cidade com menos petistas do país. Há 26 em 50 mil eleitores (0,052%). Na seqüência, aparecem São Gonçalo do Amarante (RN), Itapecuru Mirim (MA), Acarau (CE), Monte Santo (BA), Tutoia (MA) e Maranguape (CE).

8.10.05

A fé move rios

Caio

Em se considerando que valeu a lógica de que é melhor matar um projeto do que um homem, a greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, acabou relativamente bem para o governo, que, ainda que tarde, soube dar a relevância que o caso pedia e deslocou um dos seus principais ministros para Cabrobó (PE) para propor o adiamento do diálogo sobre a transposição do rio São Francisco. Também acabou bem para o bispo, que não matou a si próprio e, de quebra, deu sobrevida às discussões das obras.

O projeto, aliás, é uma babel. Afastado do eixo político-econômico do sul do país, nada sabemos e tampouco queremos saber sobre o projeto, já que por aqui temos água e outros problemas para resolver. Mas, para o governo federal, é um projeto essencial. Ali estão em jogo o futuro político do nordestino Ciro Gomes e o grande projeto social do PT para a região mais pobre do país.

Política aparte, o que chamou mesmo a atenção no episódio foi a capacidade que um jejum religioso teve de mobilizar milhares de pessoas que mal sabem quem é Ciro e PT, muito menos o que significa transposição. Peregrinaram pelo sertão nordestino em busca de algo que não sabiam, mas que queriam, visto que movidos por uma fé cega que lhes direcionavam diretamente ao bispo, o candidato à martir que poderia lhes fornecer não mais que uma benção, uma atenção, uma voz.

O processo ali ocorrido foi semelhante ao da formação dos outros mitos regionais, como Padre Cícero e Antonio Conselheiro. Imersos na miséria que os faz ignorantes, suados e sofridos sob o sol escaldante, o cenário pobre ao qual a parte rica do país pôde acompanhar com emoção contagiante contrapunha com a luta solitária de um homem letrado, o bispo, apoiado por uma massa em busca do seu Dom Sebastião, completamente desconectada com a causa da luta dele, mas que, mesmo assim, chegaram até a, ao seu lado, iniciar também um jejum. Erro, pois, o bispo dizer que os "letrados" não entendiam a sua luta, apenas o "povo simples". Oras, esse "povo simples" mal sabia o que fazia lá. Rezavam, louvavam, como fazem sempre, eis que a saída para a vida ingrata que levam. Carência de mitos de um povo, pois.

O que é mais correto dizer é que qualquer um entende a luta do bispo, dentro, evidentemente, de suas realidades. Se aos sertanejos há uma intensa paixão, no sentido bíblico do termo, aos letrados, de uma forma geral, há respeito pela bravura de passar dez dias sem comer, apesar do desinteresse pela causa. Isso, claro, se considerarmos parte desses letrados, já que muitos assistiram ao espetáculo da devoção como uma novela das seis, sem os toques da dramaturgia global, o que, na verdade, até pode ter desagradavel, já que muito pobre junto não enche os olhos de ninguém. Ou enche. De desgosto.

A greve de fome, como qualquer forma de protesto, é válida. Ela pode até ter ares de uma arrogância pacífica, haja vista que, levada até o fim, alguém morre, mas deixa a grande derrota para o adversário. Nesse sentido, cabe questionar o posicionamento de parte da Igreja ao condenar a atitude. Essa conversa de que ninguém é senhor da própria vida merece uma boa dose de relativismo, ainda mais quando se sobrepõe à essa vida a causa que a sustenta. Assim, para pessoas que têm uma motivação a lhes conduzir, por vezes maior que qualquer outra coisa, até mesmo a própria vida, vale dela abdicar.

Não tenho filho, mas não conheço um pai ou mãe que não daria a sua vida pela dos filhos. Transpondo-se isso para o bispo Cappio, que chegou a Bahia em 1974 só com a roupa de frei e o hábito de franciscano _sequer tinha documentos, o que fez com que a ordem franciscana confirmasse sua identidade, é compreensível sua atitude.

É direito da instituição religiosa questionar os atos de alguém de alto cargo como um bispo, mas a instituição também deve ter a humildade de delimitar e se perguntar até onde quer e pode chegar sua influência. A Igreja, perita em marketing há 2.000 anos, deve reconhecer a greve de fome do bispo com esse mesmo efeito marqueteiro. Ele conseguiu chamar a atenção para os supostamente esquecidos nos debates da transposição do rio São Francisco, e surtiu efeito, com o adiamento da execução da obra. Sua luta foi em vão? Evidente que não.

O quanto o governo cederá em relação ao projeto original ainda é dúvida. Alguns movimentos sociais, como o MST e a Comissão Pastoral da Terra já reivindicam a realização de um plebiscito sobre o projeto, que seria uma solução para o intenso confronto entre defensores e opositores do rio. Atualmente, dois projetos referentes a um plebiscito sobre a transposição tramitam no Congresso. A dificuldade maior será atrair atenção nacional para um projeto regional. Nem greve de fome conseguirá.