25.9.08

Crimes, direitos e castigo
Caio Junqueira, Valor Econômico, 26/09/2008

O ocaso dos empresários Isidoro Rozenblum Trosman e de seu filho Rolando Rozenblum Elpern, ambos uruguaios, teve início quando os dois começaram a remeter milhões de reais ao exterior, manobra que chamou a atenção da polícia. Proprietários da fabricante de bicicletas Sundown, Isidoro e Rolando logo se tornaram alvo de uma operação batizada de Pôr-do-Sol. Foram presos sob a acusação de sonegação, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e envio ilegal de capitais para o exterior — tudo somando R$ 150 milhões, segundo os investigadores.

O período de dois anos em que pai e filho tiveram seus telefones grampeados deu base a suas condenações por corrupção ativa: Isidoro, a dez anos de detenção, o dobro da pena do filho. Os 15 anos somados de prisão, no entanto, caíram neste mês, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ter havido abuso no prazo concedido para as interceptações telefônicas.

O caso que chegou às mãos dos ministros do segundo tribunal mais importante do país assemelha-se a outros tantos. Afinal, como se podem combater complexas estruturas criminosas sem acesso a transações financeiras e conversas telefônicas? Ou como conciliar o direito individual à privacidade do investigado com os direitos coletivos que o crime agride?

A questão se tornou mais evidente após a prisão-libertação do banqueiro Daniel Dantas, em julho, e entrou no esvaziado Congresso em pleno período eleitoral por meio da CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas — hoje, o principal palco para assuntos de grampos no país. Instalada na véspera do último dia de atividade parlamentar do ano passado, a CPI ganhou oxigênio com a Operação Satiagraha, que levou seus protagonistas — o delegado Protógenes Queiroz, o juiz Fausto De Sanctis e o próprio banqueiro — à cadeira de depoentes, na Câmara.

Apoiada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a comissão deve propor um novo marco regulatório para interceptações telefônicas. “Se estamos em um Estado de direito, não existe flexibilização de direitos. Direitos são direitos e devem ser preservados. São garantias. E os fins jamais podem justificar os meios. Tudo tem de ser feito de acordo e dentro da lei”, afirma o presidente da CPI, Marcelo Itagiba (PMDB-RJ) . “As interceptações sofreram uma banalização do procedimento. O Estado não pode estabelecer quem é seu inimigo de plantão.”

Autoridades envolvida na fiscalização e na repressão aos crimes financeiros, porém, defendem a manutenção das regras em vigor. Apresentam como trunfo estatísticas oficiais que apontam crescimento no número de inquéritos policiais instaurados e ações penais processadas sobre crimes financeiros.

“Não existe essa invasão generalizada que querem passar. O que existe é uma campanha para desacreditar instrumentos que têm funcionado. Sem eles, é praticamente impossível descobrir como essas organizações criminosas atuam”, afirma o procurador da República Sílvio Luis Martins de Oliveira, que tem no currículo casos de repercussão de crimes financeiros como MSI/Corinthians, Banco Santos e Toninho da Barcelona.

Essas autoridades temem que a onda restritiva contamine outros projetos de lei que entrarão em pauta em breve — todos elaborados com o intuito de adequar a legislação nacional à internacional no que se refere à repressão de crimes financeiros, como nos casos da flexibilização do sigilo bancário e da lavagem de dinheiro.

Aprovado no Senado depois de três anos de tramitação, o projeto de nova lei de lavagem está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara com relatoria do promotor e ex-secretário nacional de Justiça Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ). Como na questão das interceptações telefônicas, estarão de um lado os defensores de uma interpretação individualista e de outro, os que argumentam com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição.

O projeto pretende colocar o Brasil na lista dos países com legislação antilavagem de primeiro nível, como França, Itália e Suiça. De início, a possibilidade de punição por lavagem pressupunha um crime antecedente, que desse origem ao dinheiro a ser legalizado. Assim, as primeiras leis que tipificavam essa espécie de crime consideravam que apenas dinheiro do narcotráfico seria passível de lavagem.

Depois, essa possibilidade foi estendida a outros casos, que serviram de referência para a legislação brasileira de 1998, passando-se a considerar, além do tráfico de drogas, o terrorismo, o contrabando ou tráfico de armas, o seqüestro, os crimes contra a administração pública, os crimes contra o sistema financeiro nacional praticados por organização criminosa e os praticados por particulares contra a administração pública estrangeira. Na pretendida nova lei, qualquer crime poderá ser antecedente, abrangência que deve constituir o principal ponto de tensão na Câmara. Isso, por que crimes a que políticos estão mais sujeitos, como sonegação fiscal por meio da formação de caixa 2, seriam passíveis de punição também por lavagem.

Outra provável acalorada discussão deve vir com a previsão de ampliação das atividades sujeitas à fiscalização. De acordo com o projeto, quem prestar assistência de qualquer natureza a negócios empresariais fica obrigado a informar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda, as operações consideradas suspeitas. Advogados vêem nisso uma forma velada de controlar a atividade de seus clientes.

“Há a necessidade clara de combate ao crime organizado, mas crime não pode ser combatido a qualquer preço. Sempre que se permitiu um poder de polícia exagerado ao Estado, a história demonstra que essas forças acabaram por agir contra a sociedade”, afirma Cezar Britto, presidente da OAB.

Antevendo pressões, o relator Biscaia adotará como estratégia a interpretação coletivista dos direitos constitucionais. “As garantias constitucionais integram uma lista grande e temos de compreendê-las em consonância com os anseios da sociedade, de combate à corrupção. Os direitos sociais também são direitos fundamentais e são gravemente atingidos pelo ralo da corrupção”, diz Biscaia.

Faltam estimativas oficiais, mas acredita-se que de 60% a 70% dos recursos envolvidos em lavagem de dinheiro no país sejam provenientes da corrupção. No mundo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o fluxo de recursos ligados a esse crime gira em torno de 2% a 5% do PIB global. Considerando-se que, segundo a CIA, o PIB do planeta em 2007 foi de U$ 54,6 trilhões, lava-se no mundo algo entre U$ 1 trilhão e U$ 3 trilhões.

O formato que a nova lei de interceptação telefônica adquirir deverá ser um termômetro para a tramitação de outros projetos que pretendem ampliar o combate aos crimes financeiros flexibilizando direitos individuais. É o caso da chamada “ação de extinção de domínio”, pela qual os bens comprovadamente adquiridos com recursos ilícitos poderão ser tomados ao acusado antes do final do processo judicial. É claro o espaço assim aberto para a polêmica, uma vez que o direito de propriedade do acusado seria violado — como eventualmente se argumentaria. Outra idéia antiga é a flexibilização do sigilo bancário, para tornar possível que autoridades troquem entre si informações financeiras de suspeitos.

A avaliação, entretanto, é de que o momento não é “politicamente” oportuno para que tais propostas sejam apresentadas — mesma justificativa usada para explicar por que boa parte da estrutura antilavagem de dinheiro tem se concentrado no âmbito administrativo, passando ao largo do Congresso.

“Procuramos resolver primeiro o que dava para fazer entre nós, como a maior comunicação entre os órgãos”, afirma a juíza federal Salise Monteiro Sanchotene, que coordena o grupo de discussão jurídica da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), uma composição de diversos órgãos que se reúne anualmente, desde 2003, para discutir e definir as medidas a serem adotadas para o combate à lavagem de dinheiro. No primeiro encontro, havia 28 instituições de diversas áreas, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) à Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). No ano passado, eram 51.

É da Enccla que saem as medidas concretas de combate a crimes financeiros. Em um dos encontros, foi formulado o anteprojeto da nova lei de lavagem, assim como o que prevê a flexibilização do sigilo bancário e a ação de extinção de domínio. A criação do Cadastro Nacional dos Correntistas também nasceu ali, o que permitiu identificar relacionamentos entre pessoas físicas e jurídicas junto ao sistema financeiro nacional. Antes da existência desse cadastro, as respostas do Banco Central às solicitações de juízes demoravam semanas. Hoje, é possível identificar relações de forma instantânea e o detalhamento de cada caso fica disponível em até 24 horas .

A determinação de que seja dada atenção especial pelos bancos às transações das chamadas “pessoas politicamente expostas” foi proposta em 2006. Surgiu assim um cadastro com o nome de 30 mil pessoas ligadas, nos últimos cinco anos, a outras que exercem ou exerceram funções públicas — além de, obviamente, os próprios ocupantes dos cargos.

O Departamento de Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça também foi desenvolvido em um dos encontros da Enccla e hoje é responsável pelos trâmites judiciais internacionais envolvendo lavagem de capitais, entre outras atribuições.

A Enccla nasceu por causa dos resultados negativos que a, na época, recém-aprovada lei de lavagem de dinheiro apresentava. Promulgada em 1998, no ano seguinte apenas sete inquéritos haviam sido instaurados. Ninguém havia sido preso e nenhum valor fora recuperado. A Justiça Federal, então, em conjunto com outros órgãos, elaborou um estudo para verificar os motivos da ineficiência e verificou que os órgãos envolvidos não se comunicavam e faltava especialização técnica, jurídica e investigativa.

O resultado mais visível do estudo foi a criação das varas especializadas em crimes financeiros, inspirada na experiência do juiz italiano Giovanni Falcone, conhecido pelo combate à máfia italiana nos anos 1990 (que acabou assassinado).

A instituição das varas especializadas foi proposta ao Conselho de Justiça Federal pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, considerado uma das maiores autoridades no combate à lavagem de dinheiro no país. “Nas varas se aplica o mais moderno direito processual e penal da América Latina. É um modelo único no mundo, que estamos exportando. O objetivo é dar maior celeridade ao processo, pois se concentram todas as suas as fases em um único juízo”, explica Dipp.

Um exemplo é o caso Banestado, a primeira grande investigação de crimes financeiros. “O caso corria na vara comum de Foz do Iguaçu, que tem um cotidiano atribulado por crimes de contrabando e pequeno tráfico na Ponte da Amizade. Não havia como trabalhar com calma no processo. A principal virtude dessas varas é que focam seus trabalhos em crimes complexos. Sem a especialização, os processos ficam dispersos nas varas comuns e acabam sendo deixados de lado”, afirma o juiz Sérgio Moro, da 2 vara federal. O caso Banestado resultou em 95 denúncias contra 684 pessoas, das quais 97 já foram condenadas.

Hoje, o país tem 24 varas especializadas, em 14 Estados, pelas quais, em 2006, passaram 2.228 inquéritos e 462 ações penais relacionadas à lavagem de dinheiro. Em 2003, fizeram-se 1.097 inquéritos e impetraram-se 132 ações.

Há, porém, quem conteste a atividade das varas especializadas. O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, em encontro com parlamentares neste mês, classificou-as de “milícias”, em razão de juízes, policiais e procuradores atuarem conjuntamente, facilitando a autorização de quebras de sigilo e, assim, violando direitos fundamentais.

De qualquer maneira, há a avaliação geral de que o melhor sintoma de que houve evolução no combate a esses crimes — em boa parte, por força de pressões internacionais — é que a discussão atualmente se pauta pela eventual oposição entre situações de direito.

Não é à toa que o Brasil ganhou a presidência do principal organismo internacional de combate à lavagem de dinheiro, o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (Gafi). Criado em 1988 pelo G-7, sua função é examinar e desenvolver políticas de combate à lavagem. O encontro anual ocorrerá pela primeira vez no país em outubro, no Rio de Janeiro, quando Antonio Gustavo Rodrigues, presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), assumirá o cargo, com mandato de dois anos.

Nos anos 1990, o Brasil foi praticamente obrigado pelos organismos internacionais a intensificar a ação antilavagem, por que se consolidavam no país importantes elos de criminalidade. A abertura comercial promovida pelo governo Collor, a liberação do câmbio na gestão de Fernando Henrique Cardoso, a solidez do sistema bancário, associada a altas taxas de juros, uma forte economia informal sem qualquer fiscalização e quilômetros de fronteiras sem a presença do Estado, tudo isso sempre facilitou e estimulou a lavagem de dinheiro.

Capitaneada pelos Estados Unidos, a pressão tinha como real motivo o combate ao narcotráfico. Embora em 1991 o Brasil tivesse ratificado a Convenção de Viena, assumindo o compromisso de criar mecanismos que coibissem a lavagem de dinheiro do narcotráfico, as autoridades nacionais nada fizeram de imediato. As medidas só viriam no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o país se inspirou no modelo das leis de lavagem de dinheiro existentes nos países desenvolvidos, em especial a Suíça. O crime foi então tipificado, criou-se um órgão fiscalizador de transações financeiras, o Coaf, e os bancos foram situados como aliados no combate ao crime, e não como co-autores, como queriam alguns grupos de interesse.

A idéia era de que o Estado brasileiro, sozinho, seria incapaz de atuar. Os bancos, então, foram naturalmente chamados a cooperar: tinham capilaridade nacional e internacional e elevado trânsito de recursos. Em decorrência disso, iniciou-se, ainda que tardiamente, a adoção dos princípios estabelecidos em outra convenção internacional, a do Comitê da Basiléia, de 1988, que obrigou as entidades financeiras a adotar medidas antilavagem. A principal delas é a regra pela qual as instituições devem obter o máximo de informações possíveis sobre seus clientes.
A princípio, houve uma oposição branda do sistema financeiro nacional, mas nada comparado à guerra jurídica travada nos Estados Unidos, onde a discussão de flexibilização de direitos para fins de investigação foi parar na Suprema Corte nos anos 1980 — com decisão favorável ao governo. A anexação de algumas práticas bancárias no Brasil, portanto, foi facilitada por obstáculos quebrados primeiramente no exterior muitos anos antes de certas exigências chegarem ao país. A lei brasileira acabou por fazer com que os principais informantes de possíveis operações envolvendo lavagem de dinheiro fossem os bancos. Uma circular do Banco Central os obrigou a manter registros de clientes que permitem verificar a compatibilidade entre suas movimentações e sua capacidade financeira, e a comunicar a realização de operações acima de R$ 10 mil.

Outro estímulo veio como desdobramento dos atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001. O Ato Patriótico do governo Bush, promulgado na seqüência dos ataques, veio como uma pancada no sistema financeiro americano e, por conseqüência, internacional, que se viu pressionado a cumprir diligências e a verificar as listas internacionais de terroristas e criminosos.

As estatísticas refletem o aumento do rigor na aplicação da lei no Brasil. De 2003 a 2008, o número de comunicações de operações atípicas encaminhadas ao Banco Central passou de 5,4 mil para 9,4 mil. As avaliações da atuação dos bancos também. Em 2000, cinco bancos foram avaliados pelo Banco Central. No ano passado, foram 97. O valor das multas até agora aplicadas em 28 processos alcança R$ 19 milhões, além de quatro inabilitações para o exercício de cargo de diretor em instituição financeira. Todos os processos foram abertos por falta de comunicação de operações suspeitas.

À medida que o controle dos bancos foi ganhando eficiência, a fiscalização a outras entidades financeiras também aumentou. As comunicações de operações atípicas de setores com regulação própria, como a Bolsa (pela Comissão de Valores Mobiliários), seguros (pela Superintendência de Seguros Privados) e pelos fundos de pensão (pela Secretaria de Previdência Complementar) tiveram saltos enormes.

Nos nove setores acompanhados pelo Coaf, o avanço também é grande, embora não uniforme para cada um deles. Com apenas 14 analistas, a saída foi informatizar todo o sistema e aumentar o intercâmbio com outros órgãos. Em 2007, por exemplo, na elaboração de 1.555 relatórios encaminhados a autoridades, foram utilizadas 23.858 comunicações recebidas de instituições financeiras não-bancárias — um aumento significativo, em relação a 2003, quando os números foram, respectivamente, 521 e 1.344. Boa parte dessas informações resulta em investigação policial. De 2003 a 2006, de 181 operações realizadas pela Polícia Federal, 27% continham informações do Coaf. Em 2006, chegou-se a 33%.

A prisão dos Rozemblum está incluída nessa contabilidade. Resta saber se os dois, proprietários do principal shopping de Joinville e de uma construtora, terão suas condutas avaliadas por critérios dos direitos individuais ou dos direitos sociais. Ambos assistirão ao debate de Montevidéu, para onde fugiram.