28.7.05

FHC, Lula e Jobim na aula de direito casuístico

Caio

Crê-se que toda crise política deve ser seguida de uma renovação no quadro dos representantes, a se realizar nas eleições. Cansados e perplexos pela mesma história repetida por outros atores, a população brasileira, ávida por justiça, mas sem se lembrar de quem votou nas últimas eleições e portanto sem cobrar deles a atuação devida, vai às urnas e pune os delúbios, os dirceus, os genoinos e os silvinhos. Ainda, repito, que venham a se esquecer dos novos escolhidos pouco tempo depois, mas isso faz parte da nossa história, cíclica que é.

Outro aspecto da mudança é a própria mudança. Do sistema. Esse sim o grande culpado pelos péssimos hábitos dos puritanos burocratas das máquinas partidárias. O financiamento privado de campanha e as facilitações que proporciona é o alvo da vez. Discute-se o financiamento público, a fidelidade partidária, a prestação mensal de contas no período eleitoral. Enfim, discute-se tudo. Agora. Antes não. Quando todos estavam centrados na reeleição ou não dos integrantes da Mesa da Câmara, quando todos discutiam a viabilidade de aumentar seus salários, quando todos tiravam e continuam a tirar seus três meses de férias o que era esse tal financiamento público imerso num longo texto de uma tal reforma política? Mais um tema subtraído às vistas alheias da sociedade, visto que não de muito interesse no perfazer-se diário do objetivo real por qual quiseram obter seus cargos: dinheiro e poder.

No entanto, hoje, com a revelação do envolvimento amplo, geral e irrestrito (só para ficar no slogan setentista dos hoje envolvidos) de tucanos, vermelhos, pefelistas, liberais, trabalhistas em um valerioduto que a cada dia é renovado ou por novos integrantes ou por novos esquemas espúrios de burlar a Viúva, todos se voltam à causa principal de toda a lama: o sistema. Não, não é o homem o culpado. Esnobam a inteligência alheia ao perpetuar a tese de que somos nós, homens, os culpados. Nossa natureza, se me fazem entender. Retomam a filosofia para afirmar que o poder corrompe os homens. Nesse caso, perdoem-me, não. O poder os revela.
E cada um a sua maneira. Não de revelá-la, claro, mas de justificá-la. Dom Fernando Henrique e sua pompa inova nesse aspecto ao criar novas figuras jurídicas para defender os seus pupilos que fizeram a lição de casa errada. O senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), tucano de bico vistoso, usou a lavanderia do seu Marcos Valério em 1998. Dom Fernando não achou tão grave. Acha que denúncias como essa desviam o foco das denúncias contra os rivais petistas. Inova no direito tapuia. Cria a figura do flagrante de crime eleitoral, ou um habeas corpus político preventivo. Lula, por sua vez, em sua triste e equivocada omissão sobre tudo o que se passa no país, cria uma legítima defesa política. Acha que buscar o amparo das massas é válido em meio ao bombardeio da oposição. Esquece primeiro que esse bombardeio, apesar de por vezes dimensionado, fundamenta-se nos fatos, esses sim, as excelências de toda a crise. E segundo, mostra confiança em demasia no trambiqueiro Duda Mendonça, mentor dessa movimentação. Ser aclamado pelo povão é bom, vale a foto da capa, dá manchete. Mas é cálculo de risco à medida em que os fatos, que não escolhem data para aparecer, sucedem-se e fatos são fortes o suficiente para, se não quebrar o mito, tirar-lhe a aura de superior às incorreições e impurezas do homem bom.

A esses movimentos de Lula há _triste país o nosso_ até suporte jurídico do maior representante do setor no país. Trata-se do grande jurista Nelson Jobim, presidente do STF, o juiz político, peemedebista e governista, sempre que assim se faz necessário. Ao iniciar uma rodada de conversas com líderes dos partidos políticos advertindo-os de que o país ficará ingovernável nos próximos dez anos se a oposição tentar derrubar Lula, criou a figura do atenuante para crime cometidos por presidentes carismáticos. Aqui, não importa o grau de envolvimento do presidente da República, qualquer que seja ele, com eventuais atos de improbidade e afins.

Se tem carisma, o povão gosta, e a deposição via impeachment abalará o país, melhor deixar quieto. A rigor, a tese é verdadeira. Mas impedir quem quer que seja de cair por risco de instabilidade é uma tentativa de blindagem que fracassa diante, novamente, dos fatos. É, mais do que isso, confundir os interesses eleitorais dele e de seu futuro partido, o PMDB, e tentar apegar-se a um presidente que aparece ainda imbatível em pesquisas eleitorais.

Aparte defesas cegas e propostas de mudanças por conveniência, o que precisamos agora é de sangue, muito sangue, escorrendo do Congresso, dos partidos, de Brasília. Cortar na carne os malfeitores, cassar-lhes os direitos políticos, afastá-los em definitivo da vida pública. E lembrar que punir apenas a porta de saída é dar chance de que o sistema seja mantido, mude-se ou não suas regras, já que o lado de lá, a outra face do esquema de corrupção, será mantida. A porta de entrada, em que lavagem de dinheiro e financiamento ilegal da política estão intimamente ligados por relações subversivas entre políticos e empresários são o outro vetor condicionante da corrupção. Se uns usam do poder dos votos para intermediar seus interesses eleitorais, os outros usam o poder econômico para defender seus negócios. Se uns são corruptos, outros são corruptores. Permitir que os ricaços que tanto como os políticos mamam nas benesses do Estado, via facilitações contratuais, tráfico de influência, off-shores e afins é corrigir uma parte do defeito, e, portanto, não corrigi-lo. Melhorar o sistema envolve vários fatores e, desse modo, há vários envolvidos nesse processo. Os eleitores, pela análise do que há por aí, e os políticos e a Justiça, pela punição de todos os envolvidos. Não pode sobrar ninguém.

14.7.05

Aos corvos

Caio

Em Ilíada , de Homero, o prenúncio da vinda dos corvos revela o ânimo forte desses corvídeos ansiosos por destruição do que caminha para a morte, ou do já morto ("Corvos virão lacerar-te as tenras carnes, aos bandos, batendo, ruidosos, as asas"). No Brasil atual, da dinherama das malas e das cuecas, os corvos se fazem mais do que presentes. Há dois tipos. Os que estão dentro da estrutura do poder, explorando a carne de um Estado podre e viciado, e os que estão fora do comando, apreciando com escárnio toda a sujeira.

Os primeiros, dito aparelhadores, formaram-se neste governo sob o comando do Zé. Era a turma do Zé, previamente estruturada em seu partido desde sua ascenção á presidência da sigla, em 1995. Mais do que a fome de poder, a necessidade transcendental de mantê-la aos moldes de como fora instaurada na legenda _e que deu certo, já que foi reeleito por duas vezes_ poderia ,por que não, ser facilmente aplicada na Casa Civil. E o foi. Sua atuação em ambas as esferas foram semelhantes. Estrutura-se, coloca-se "gente sua" nos principais postos, articula-se ao seu gosto e ponto. Para que investir na organização e na mobilização da sociedade civil para viabilizar o projeto de poder do partido quando o caminho mais fácil é pelas facilitações do poder, que podem ser divididas sem qualquer compromisso com ideologia, como, aliás, sempre foi feito no país. Zé e sua turma são os principais culpados do desmoronamento do governo petista. Acharam que corromper pelas suas causas era diferente de corromper em causa própria. Ignoraram que a corrupção pública, aquela que não visa o enriquecimento prório, chega até a ser pior que a privada, vez que esvazia as instituições e sobrepõe um poder ao outro, no caso, o Executivo sobre o Legislativo. Um erro de estratégia do ex-brilhante oponente do regime militar. Lula também deu grandes contribuições para o enfraquecimento de seu governo. Como falta espaço para listá-la e aqui não é o principal tema, fico com apenas seu hábito herdado do sindicalismo de ouvir, ouvir, demorar, demorar e nada, ou muito pouco, resolver. Faltam-lhe muitas vezes a energia, o raciocínio rápido e a sensibilidade política necessária para um comandante do país, já que, em política, a demora em tomar decisões pode agravar situações.

Mas voltemos ao Zé e a sua estrutura. Se ela ruiu, o governo federal treme, mas ainda se segura. Ao menos por enquanto. Lula tentará, daqui para a frente, desligar-se publicamente do partido enquanto aguarda, ineternamente, que ex-ministros tentem salvar a agremiação, aproximando-se do governo. Na prática, os dois querem se aproximar. Mas um, Lula, não o pode fazer de forma tão explicita, já que o PT hoje está manchado na opinião pública. Ele consegue seguir presidente sem a legenda que fundou, mas sabe que em 2006 precisará dela para se candidatar. E, como ela precisará estar firme e forte, ainda que recauchutada, para o que promete ser uma das campanhas mais polarizadas da história, deslocou seus ministros para a operação-resgate.
Isso tudo, claro, se as denúncias não chegarem ao presidente. Como todo o esquema foi montado e coordenado no mesmo prédio em que Lula trabalha, é mal-visto, aos olhos da população, pensar que o presidente não sabia de nada. Dá ares de leniência, desleixo, ingenuidade ou, pior, participação. É ele quem governa mesmo? O que salva o presidente é sua trajetória e seu simbolismo, que faz com que até mesmo a oposição tema qualquer envolvimento seu. Seria frustrante demais para a população descobrir qualquer relação do presidente com as denúncias. Ademais, nas ruas, o resultado disso é imprevisível, mas também prejudicial aos setores direita. O afastamento de Lula antes das eleições de 2006 dará, no entendimento popular, ares de golpe e possibilidade de uma convulsão social, já que se trata ali _e aqui falo do Lula pré-poder_ de um símbolo da ascensão do pobre, do miserável, ao poder, subvertendo toda a lógica da história brasileira. Afastar Lula é perigoso. Daí porque, como já anunciado pelo presidente do PFL, Jorge Bornhausen, seria melhor condená-lo a ser candidato, para perder nas urnas. Se o presidente tem ou não culpa, as investigações e, principalmente, a quebra de sigilo telefônico do Zé deverá mostrar. Resta esperar.

Ocorre que os outros tipos de corvos _aqueles que não comandam o país_ assistem a todo o lamaçal do camarote, comendo pipoca e gargalhando, torcendo para que a dinâmica das denúncias seja mantida, fazendo a lógica do quanto pior, melhor. Padecem de um sentimento que julgam ter, mas que passa longe deles. O de brasilianidade. Não é nada satisfatório ou divertido ver o que acontece hoje no país. O eventual fracasso da estrela vermelha que subiu ao poder é também o fracasso das práticas que esses mesmos setores sempre fizeram quando comandaram o país. Ao atacar o fisiologismo, o conchavo petista, a máquina burocrática partidária de produzir votos e abafar ideologias, atacam a si mesmo, afinal, implementaram o esquema lá atrás e sempre assim o mantiveram. Claro que a vingança na política é um fator crucial nessa alternância de poder. Se petistas exageraram ao pedir o Fora FHC em 1999, se fizeram muitas vezes a oposição cega, se se julgaram os únicos detentores da ética e da moralidade pública, hoje a fatura chegou. É a vez da revanche. Da mesma maneira que os própios petistas já tiveram a sua em 1992, quando foram implacáveis contra Collor, que os derrotara três anos antes.

Porém, acompanhar o Brasil em frangalhos e gostar disso é falta de sensatez. Não partidarizo a crítica. A torcida contra se revela em diversos setores da sociedade civil. Mostra egoísmo, uma vez que a vida desses setores, de muito pouco vai mudar com um PT ou um PSDB ou qualquer outro partido no governo. Tem suas casas, suas piscinas, plano de saúde privado, os filhos estudam em escolas particulares e tentam ir uma vez por ano ao exterior. Definitivamente, não é a essas pessoas que o país tem de ter as prioridades de suas políticas. Não que devam ser excluídas, mas não é muito imaginar que milhões de pessoas ainda aqui vivam sem quaisquer condições de saneamento, para ficar em um item apenas. Por isso falta civismo em torcer para que um governo de esquerda dê certo. Falta civismo torcer para que qualquer governo não dê certo. Falta também a percepção de notar que esse país só vai melhorar quando for mais justo, mais inclusivo.
E falta informação. Lula não apareceu nesta semana como ainda imbatível nas eleições de 2006 à toa. A pesquisa revela que , mesmo com as denúncias, o sentimento popular de de que "são todos iguais" persiste, reforçado com a descoberta de um bispo-deputado-pefelista com R$ 10 milhões em malas, ou com a relação de Marcos Valério com tucanos mineiros, o que faz com que mantenham a confiança em Lula, "gente como nós". Além disso, mostra que o discurso oposicionista de que o governo parou, se não é errado, é falho. Nenhum governo se interrompe automaticamente com denúncias. Nenhum governo faz só o que os jornais publicam, qualquer que seja o governo. As escolas não param com denúncias, CPI´s não interrompem distribuição de Bolsa-Família, depoimento de testemunhas não pára o porto de Santos. Enfim, país nenhum se interrompe com crise política. O que pára, sim, é o Congresso. Mas vá lá, convenhamos, esse nunca gostou de trabalhar mesmo.

Não sou muito afeito a pesquisas e comparações, pois são relativos, ainda mais quando jogados em épocas diferentes. Mas, apenas para exemplificar, um estudo da revista Inteligência deste trimestre, a melhor revista menos conhecida do Brasil, compara 100 indicadores de desempenho econômico, social e produtivo entre os primeiros biênios das gestões FHC e o primeiro biênio da gestão Lula mostra que, na média geral, o desempenho dos dois primeiros anos do PT é superior aos dois primeiros anos de FHC em 64 dos indicadores. Isso revela que é falsa a tese de que o país está sem governo. Para eventual análise de algum leitor, o estudo está disponível pela internet (http://www.insightnet.com.br/inteligencia/pdf/29/cap01.pdf e http://www.insightnet.com.br/inteligencia/pdf/29/anexo.pdf).

Lula tenta salvar seu governo. Eliminou José Dirceu, mentor do estruturamento que montou. Aproximou-se de figuras apartidárias, como o ministro Márcio Thomas Bastos (Justiça). Encaminhou boa parte de seus ministros ao Congresso, de volta aos seus mandatos e empenhados em formar a tropa de choque do governo em uma das maiores crises da República. Tentarão impor seu trabalho à turminha do PT na Câmara, por sinal, fraquíssima. Não dá, de fato, para confiar a defesa do Planalto em gente fraca politicamente, deslumbrada e despreparada como José Mentor e Professor Luizinho, entre outros. Também mandou um dos seus melhores ministros, Tarso Genro (Educação), para a presidência do PT. Tem de travar a luta contra os corvos de dentro de seu governo e de seu partido, e os de fora, que adoram a crise, apesar de entenderem muito dela.