23.10.07

Pagrisa expõe contradições da base aliada
Caio Junqueira
Valor Econômico, 09/10/2007


A entrada do PMDB na base governista no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aumentou a presença de ruralistas entre os aliados e fomentou a ocorrência de maiores divergências político-ideológicas, na medida em que essa mesma base agrega setores historicamente adversários aos ruralistas, como os movimentos ligados aos direitos humanos e à reforma agrária. Na atual legislatura, a bancada do agronegócio é composta por 102 parlamentares, dos quais 61 integram a base, número bem superior ao do primeiro mandato, quando apenas 33 dos 112 ruralistas apoiavam o governo no Congresso.

O mais eloqüente exemplo disso até o momento é o caso da Pará Pastoril e Agrícola S/A, ou Pagrisa, única usina de álcool paraense, que foi autuada, entre 28 de junho e 8 de julho, em uma fiscalização do grupo móvel contra a erradicação do trabalho escravo do Ministério do Trabalho. Trata-se de um latifúndio de 17 mil hectares localizado em Ulianópolis, sudeste do Estado, que se tornou um símbolo das contradições de um governo que abriga espectros ideológicos opostos. Para os fiscais, a rescisão do contrato de 1.064 trabalhadores representa a maior ação de libertação da história do país. Para os ruralistas, foi o maior caso de abuso de poder e de irregularidades da história do país. No meio do embate, está o governo federal e duas de suas mais vistosas políticas: a promoção do Brasil como a meca do etanol e o combate ao trabalho escravo no país.

Tão logo assumiu o cargo e embalado pelos setores progressistas que sempre estiveram no seu entorno, Lula lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. O plano contempla a necessidade de aprovação da proposta de emenda constitucional do trabalho escravo, que prevê a expropriação para reforma agrária de propriedades onde for constatado trabalho escravo. Considerada pelos especialistas como uma das principais medidas, por pressão da bancada ruralista - que no primeiro mandato tinha um terço de seus integrantes na base governista - a PEC não andou. Ou melhor, depois da comoção nacional causada pelo assassinato de três fiscais do trabalho em uma emboscada em Unaí (MG), foi aprovada em primeiro turno na Câmara. A partir daí, caiu no ostracismo.

O relator da PEC, Tarcísio Zimmermann (PT-RS), explica a razão: "Passou a ser de pouca prioridade para o Executivo e de permanente barganha política da bancada ruralista, que barrou a ida ao segundo turno de votação. Chegamos a pedir ao governo que ao menos colocasse em votação, mas não fomos atendidos." Ainda assim, o combate ao trabalho escravo avançou. Entre 1995 e 2002, 5.835 trabalhadores foram libertados no país. De 2003 a setembro deste ano, foram 18.759.

Mas foi no segundo mandato que as contradições emergiram com mais força. Lula encampou de vez o etanol como política de Estado e chegou a chamar os usineiros de heróis, "porque todo mundo está de olho no álcool". Simultaneamente, passou a enfrentar questionamentos de setores à esquerda sobre as condições de trabalho da produção do combustível. As principais críticas vêm da Comissão Pastoral da Terra, entidade com grande capilaridade na região Norte e Nordeste que é a principal depositária de denúncias de exploração de trabalho escravo nas propriedades rurais. "Lamento que em um momento de grande euforia econômica com a comercialização dos produtos agrícolas brasileiros no exterior, não se tomem medidas claras para pela garantir de condições dignas de trabalho", afirma o frei Xavier Plassat, liderança do movimento.

Lula ainda não se posicionou sobre o caso Pagrisa. No limite, deu declarações conciliatórias. Em entrevista recente ao jornal espanhol "El País", comparou o trabalho do cortador de cana ao dos mineiros ingleses da Revolução Industrial. "É um trabalho muito duro, quase desumano. As pessoas o fazem porque necessitam. Como se fazia antes nas minas de carvão. As minas não eram menos degradantes do que a colheita de cana. E eu preferiria passar toda minha vida cortando cana do que passar uma semana nessa mina. Mas aquele trabalho nas minas permitiu que o mundo chegasse ao que chegou".

Uma explicação para o seu silêncio está justamente no fato de o governo querer evitar uma indisposição tanto com setores ligados ao PT, como ao setor mais proeminente do agronegócio nacional, o do etanol, que embasa discursos que o presidente faz mundo afora. Além disso, Lula sabe da fragilidade da base no Senado e quer evitar ao máximo mais problemas na Casa até a votação da CPMF.

Atualmente, a voz ruralista mais forte no Congresso é a senadora Kátia Abreu (DEM-TO). Viúva há 20 anos, herdou do marido uma propriedade rural e a partir daí engajou-se na causa. Atual vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil, foi por dez anos presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins. Eleita deputada federal em 2001, já no ano seguinte foi a primeira mulher a chefiar a Frente Parlamentar da Agricultura. Ela é relatora da Comissão Especial Externa do Senado Federal montada para investigar a autuação dos fiscais do Ministério do Trabalho na Pagrisa. "O grupo móvel existe há 12 anos e de lá para cá surgiram diversas denúncias de exageros. O ministério não deve se colocar acima do bem e do mal. Ele mesmo deve investigar. Não pode fechar os olhos e achar que nada acontece", afirmou ao Valor.

Após investigar a ação na Pagrisa, o resultado esperado da comissão é que sejam sugeridas na lei diferenças entre irregularidades trabalhistas , trabalho degradante e trabalho análogo ao escravo, três gradações diferentes para agressões aos direitos trabalhistas, sociais e humanos, na qual o trabalho escravo é o mais grave. Mas as declarações da senadora sugerem um rumo que a comissão pode tomar: a de investigar fiscalizações pregressas dos grupos móveis, por abuso de poder. Algo que o diretor-proprietário da Pagrisa, Marcos Zancaner, acusa: "Os fiscais consideraram infração pequenos problemas que poderiam ser sanados ali. Perguntaram também a todos os empregados se queriam sair para receber três meses de seguro-desemprego do ministério. Claro que houve uma debandada, pois o trabalho ali é só durante a safra, por seis meses. Temos casos de trabalhadores que nem haviam começado o trabalho e foram dispensados pelos fiscais."

A hipótese de que o caso Pagrisa pudesse ter sido resolvido sem que alcançasse a proporção que tomou é aventada por um procurador do Trabalho especialista em trabalho escravo: "Não acredito em excessos, mas acho que a questão poderia ter sido resolvida ali mesmo". A instalação da comissão foi justamente o que abriu a crise. Os fiscais se sentiram intimidados e, em um contra-ataque por determinação do ministério, suspenderam suas ações em todo o país desde 21 de setembro . O trabalho deverá ser retomado esta semana.

As acusações sobre a Pagrisa são, basicamente, de que os trabalhadores dormiam em redes, não tinham água potável, a comida servida comumente estava estragada e causava diarréias, a jornada de trabalho era extensa e as dívidas contraídas na farmácia e no restaurante eram tamanhas que muitos dos contracheques recebidos apontam valores irrisórios, como R$ 2 ou R$ 6. Em alguns casos, o contracheque apontava o "recebimento" de R$ 0.

Criado em 1995 após um pacto de atuação conjunta no ano anterior entre Ministério Público, Ministério do Trabalho e Polícia Federal, a finalidade do grupo móvel é fiscalizar as denúncias com a segurança da presença de integrantes desses três órgãos, já que é comum os fiscais sofrerem coações. Há relatos de porteiras trancadas com os fiscais dentro da propriedade, tratores e camionetes impedindo a passagem, rodas dos carros oficiais "repentinamente" desparafusadas, ou mesmo "conselhos" dos administradores das propriedades de que o local onde estão é um tanto "inóspito e afastado" e que, assim, faz-se necessário "todo cuidado". Telefonemas de políticos locais ao auditor que comanda a operação também são comuns.
No caso Pagrisa, o primeiro a atuar foi o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), um suplente que assumiu o cargo em 2005 após o afastamento do titular, Duciomar Costa, eleito prefeito de Belém em 2004. Ribeiro esteve na empresa já durante a fiscalização e contatou outros ruralistas em Brasília. A empresa também teve o apoio do delegado regional do Trabalho do Pará, Fernando Coimbra, o que causou a revolta do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. A entidade encaminhou ao ministro do Trabalho, Carlos Lupi, um pedido de exoneração do delegado, um funcionário público ligado ao PDT e que chegou ao cargo por meio de uma indicação política do comando paraense da sigla, seguindo a orientação do ministro Carlos Lupi, presidente do partido, de que as bancadas pedetistas regionais tentassem ocupar os comandos das DRTs.

A atuação de parlamentares em favor de uma empresa não é novidade. Três casos recentes são considerados emblemáticos. Em 2005, uma destilaria de propriedade do empresário Eduardo Queiroz Monteiro, irmão do presidente da Confederação Nacional da Indústria e deputado Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), foi recordista na libertação de trabalhadores pelos fiscais: 1.003. Acabou sendo incluída na "lista suja" do governo, que arrola as empresas flagradas com escravos e automaticamente as impede de receber financiamentos públicos. Com a medida, teve a comercialização de seu álcool cortada pelas distribuidoras. Em vão, o então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), telefonou para o presidente do Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis questionando as razões do cancelamento da compra do álcool produzido pela destilaria. A saída foi a troca de nome. Eduardo Monteiro formou uma nova destilaria, Araguaia, e incorporou a antiga. No início da moagem da Araguaia, festa conhecida por "butada", estiveram presentes o presidente da atual Comissão da Pagrisa, senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), e o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS).

O deputado Inocêncio Oliveira (PR-PE), segundo vice-presidente da Câmara, integrou a primeira "lista suja" do país. Em sua fazenda em Gonçalves Dias (MA), foram libertados 53 trabalhadores em 2002, quando ele era primeiro-secretário da Câmara. Conseguiu que o Ministério do Trabalho soltasse nota voltando atrás na autuação. A propriedade acabou sendo vendida posteriormente. No ano passado, o STF arquivou o inquérito contra Inocêncio, mas o Tribunal Regional do Trabalho confirmou sentença de indenização em primeira instância determinando que fossem feitos novos pagamentos aos trabalhadores. O deputado recorreu ao TST.

Também houve pressão do senador João Ribeiro (PR-TO) junto ao ministério. Em sua fazenda Ouro Verde, em Piçarra (PA), foram libertadas 38 pessoas. Em 2006, o Tribunal Regional do Trabalho do Pará o condenou a pagar uma indenização de R$ 76 mil por danos morais coletivos. Ele também foi denunciado no STF pelos crimes de redução de pessoas à condição análoga a de escravo, negação de direitos trabalhistas e aliciamento de trabalhadores.