20.9.05

A improvável travessia petista

Caio

Após a fundação do Partido dos Trabalhadores, em fevereiro de 1980, a data mais importante para os militantes, filiados e para os que odeiam a sigla é amanhã, quando os mais de 800 mil filiados poderão comparecer às urnas para decidir o futuro do partido. Afora o independente Gegê, ligado ao movimento de moradores, e o trotskista Marcus Sokol, disputam de fato o pleito o representante do Campo Majoritário _tendência que domina o PT há dez anos e responsável por sua guinada à direita e os outros quatro candidatos da chamada esquerda do partido. Para quem torce contra o partido, o ex-ministro de Lula é o nome mais apropriado para digamos, torcer-se.

Egresso do grupo que maculou o PT e introduziu no partido práticas comuns em outras siglas, como a aceitação de recursos de grandes empresas e de banqueiros para as campanhas eleitorais, a introdução do marketing eleitoral e a adequação do programa partidário ao bel sabor das classes mais abastadas da sociedade, a tendência ruiu o PT.

A que se ponderar, porém, essa observação. Como teria o partido ruído por essas adequações se foram elas que os fizeram vencer eleições e se tornar uma máquina eleitoral? E antes, quando todo o processo era feito, os milionários valores inundavam as eleições, onde estava a inquirição de todos acerca da proveniência do dinheiro? Parece hoje muito fácil a esquerda do partido atacar a conduta do Campo, de Dirceu e sua turma, mas não é difícil afirmar que, sem elas, o caminho ao poder com o discurso de estatização, calote na dívida externa e fora FMI seria quase impossível por vias democráticas.

Com todo o decorrer da crise, entre petistas se busca sempre seu efetivo início, sem consenso naturalmente. Alguns lembram a Carta ao Povo Brasileiro, em 2002, que acalmou o mercado e os endinheirados com a promessa de garantia dos contratos. Outros vão a 2000, na imposição de Lula de que só concorreria pela quarta vez à presidência se ganhasse. Há ainda a lembrança de 1995, quando foi aceito o grande capital na campanha, ou, no mesmo ano, a não-depuração interna feita ante as denúncias do ex-petista Paulo de Tarso do suposto esquema operado pela cúpula do partido para arrecadação de dinheiro em prefeituras administradas pela legenda.

O fato é que essas medidas não devem ser vistas isoladamente, mas como parte de um processo, o qual alguns tentaram impedir e foram sumariamente expulsos_ outros fingiram que não viram, já que o que interessava era o poder, e mais outros _Campo Majoritário basicamente_ aceitavam-no como o caminho para o poder.
As opiniões expressas em geral remontam a paixões dos seus emitentes, tal qual ocorre no que por aí se prolifera em relação a crise política. Ao escutar um petista convicto defender Lula, é possível que seus argumentos sejam coerentes, baseados no ele-foi-traído-e-nada-sabia. Com tucanos e pefelistas, o mesmo, com fundamento no mas-que-presidente-omisso-ou-ladrão-é-esse.

Nesse mesmo sentido, não faz sentido torcer para a derrocada terminal do Partido dos Trabalhadores, ainda que isso possa ocorrer. Isso porque um partido, antes de se firmar por quadros ou condutas, ele é construído em meio às idéias dos seus formadores, e é aí que o PT sempre se diferenciou dos seus pares e se tornou um dos principais fatos políticos do país no século 20 (assim como seu fim pode ter o mesmo título neste início de século).

Imaginar que a cassação do registro do PT ou sua desmoralização possa abafar o que por trás dele é, ou foi, representado, é um erro, vez que o partido pode passar, mas a massa desassistida que, ao menos em tese, foi objeto de cuidado da legenda, não passará tão cedo. Os anseios dos intelectuais que formaram o PT e as demandas da população menos favorecida continuarão, ainda que o partido passe. Nessa linha, a forma de representação encontrada pelas causas embrionárias do PT pode muito bem mudar de sigla e serem abrigadas em outra casa, e aí está o PSOL em franco crescimento.
No entanto, o que pode salvar o PT, neste momento crítico, é uma vitória da esquerda do partido concomitantemente com uma adequada visão política de futuro, coisa que, convenhamos, nunca foi muito o forte dos partidos de esquerda. Basta lembrar que das poucas vezes em que um partido de operários chegou ao poder, na Itália dos anos 20, o sonho durou pouco e logo o governo foi entregue ao ditador Benito Mussolini.

Colocados lado a lado, a esquerda petista que hoje concorre se divide entre mais próxima ao Campo Majoritário (a deputada gaúcha Maria do Rosário); uma de centro, que divide sua plataforma entre críticas à política econômica e apoio a Lula (a do terceiro vice-presidente Valter Pomar); uma que apóia Lula mas tece críticas mais duras ao seu governo (a do ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont); e, finalmente, a de ultra-esquerda, que ataca Lula e todo o seu governo, num discurso que se aproxima do da oposição (a do economista Plínio de Arruda Sampaio).

Desse modo, assim como na atmosfera política de qualquer nação, dentro do universo petista há uma linha que vai da extrema direita (Campo Majoritário) para a extrema esquerda (Plínio Sampaio). E não é forçoso dizer que a vez da direita petista chegou ao fim. Se o modelo a que o petismo se rendeu é o utilizado ampla, tradicional e historicamente pela maioria dos partidos políticos do país, o grupo petista que fez essa escolha deve ser bem punido pelos militantes com a sua saída do comando da sigla.

Esse, frise-se, seria o primeiro passo. Reorganizar o partido com todas as premissas que o formaram respeito à diversidade de opinião e a estrutura partidária. A travessia será difícil, ainda mais com a permanência do Campo Majoritário do partido. Qualquer que seja o resultados das eleições e do período pós-eleitoral petista, a certeza que fica é de que a causa embrionária do petismo nunca lhe pertenceu, e o eventual fim simbólico do partido tampouco a eliminará. Ao contrário, dará força para que as novas tendências de esquerda aprendam como não fazer com o PT e permeiem seu trabalho por uma fidelidade às práticas que suas causas pedem.

1.9.05

A irresponsabilidade como requisito político

Caio J.

O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), foi, assim, dizer, o personagem da semana. Não que ele precise fazer muito para torná-lo. É o típico homem que aparece e acontece, perdoem-me o chavão. Mas essa semana houve algo como um superdimensionamento de sua figura, do atraso dos costumes políticos e da pieguice personalista por ele representada. Em entrevista à Folha de S. Paulo, defendeu a complacência com a corrupção. Para quem não se divertiu com a entrevista-piada-tragédia de uma página, em suma, o tosco parlamentar afirma que os deputados que comprovarem a utilização de recursos ilegais em suas campanhas merecem penas mais brandas, como uma advertência, enquanto os que receberam recursos em troca de apoio deveriam ter uma pena mais grave.

O problema em si não está propriamente na gradação de uma pena para a outra, visto que, de fato, a natureza dos são crimes diferentes. Em uma, burla-se o sistema para ter mais recursos, e, assim, mais chances de vencer a eleição. Em outra, burla-se a alma, a convicção, a ideologia ou a ausência desta stricto senso, e se troca o direito fundamental de um parlamentar e símbolo máximo da sua representação popular, o voto, por dinheiro. Ambos os casos corrompem o sistema, mas, em se considerando que um homem pode perder tudo, que continua tendo a sua alma, se esta é vendida, perde-se ela e aquele ao qual a ela se vincula.

Ocorre que aqui não se fala de um cidadão comum. O parlamentar, na atribuição de suas funções, possui um caráter diferenciado, vez que a ele é delegado o poder popular. Nessa linha, quando se vende, ou quando corrompe um sistema, seja ele eleitoral, fiscal ou até mesmo do clube a que pertence, iguala-se na quebra do que se usa chamar decoro, que nada mais é um nome chique para a quebra da safadeza implícita que não se deve deixar emergir quando se está ali, trabalhando e recebendo por delegação popular, ainda que isso seja ignorado pela maioria dos que lá estão.

Desse modo, caixa 2 e venda de voto podem até ter uma diferença no cerne de suas motivações e finalidades, mas nunca devem ter tratamento desigual quanto à gradação de suas punições. As duas devem ser vergastadas com a devida propriedade. Mas a situação é tão crítica que, como a punição exige autoridade, resta um quadro em que ficam escassas as lideranças para fazê-lo. O problema, como diz a piada corrente, não é de política, é de polícia. O presidente do Conselho de Ética, por exemplo. Soldado malufista, abateu-se durante os desvios dos recursos destinados a pagar precatórios judiciais nas gestões Maluf e Pitta em São Paulo. “Ele (Maluf) usou o dinheiro dos precatórios para fazer obra'', afirmou na época.

Há suspeitas dos motivos que levam Severino a ser tão brando com suas exigências. O presidente da Câmara declarou à Justiça Eleitoral ter gasto R$ 60 mil em sua última campanha por Pernambuco. Não declarou gastos comuns em qualquer campanha, como combustível. O jornalista Ricardo Noblat, conforme relata em seu blog, ouviu cinco pessoas do Recife habituadas com campanhas: três deputados federais, um estadual e um ex-ministro. Todas calcularam que a campanha de Severino não saiu por menos de R$ 600 mil, uma vez que se baseou na distribuição de cabos eleitorais nos grotões do Estado. Isso porque não houve gastos com gasolina.

O diabo em tudo isso, não bastasse o fato isolado deste homem ser o terceiro da linha sucessória, é uma velha prática de nossa sociedade: o afago, o puxa-saquismo. Neste país do status, não importa o caráter e os valores de uma pessoa para ela ser, digamos, agraciada com a boa educação da comunidade que o rodeia. Aqui, basta o poder, seja ele político ou financeiro, para capacitar alguém ao cargo de personalidade passível de congratulações e receber os beneplácitos de uma comunidade. Isso a despeito de práticas sujas empresariais que ele tenha praticado para chegar ao bom saldo financeiro em que chegou. Isso a despeito da condução impoluta de sua vida política. Tudo em nome do interesse. O ricão, ou o politicão tem, no Parlamento, nas grandes e nas pequenas cidades, a garantia de seus egos agraciados com o séqüito que os seguem e acabam os cegando, por, na realidade, estar cercado de devotos de uma fé suja, pois maculada por sub-interesses que não os da amizade e admiração, mas o do medo e do interesse. Daí decorre outras bizarrices vistas nesta semana em Brasília. A força com que os petistas-governistas-lulistas, como Devanir Ribeiro (PT-SP) e Arlindo Chinaglia (PT-SP), saíram em defesa de Severino após o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) trocar ofensas com o pernambucano e pedir sua deposição, em razão de suas declarações à Folha mostram isso. Fato pior foi a condecoração de Severino com a Grã-Cruz do Rio Branco, a insígnia de mais alto grau da diplomacia brasileira, concedida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma ofensa a mundialmente reconhecida diplomacia nacional. Revela, assim, interesse e medo.

No entanto, não seria justo atacar somente os que dele precisam nesta crise. Cabe questionar quem o colocou lá. E aí aparece a oposição, tucanos e pefelistas que, em optar pela integridade e chatice do petista Greenhalgh, preferiram achincalhar o governo e eleger ele, Severino, em uma operação que hoje virou reversa, haja vista o explícito interesse do presidente da Câmara em segurar processos contra os governistas. O que comprova que, no quesito responsabilidade, ninguém passa. Pobre país.