24.4.05

Quando o totalitarista Vaticano escolhe uma estratégia

Caio Junqueira

É preciso enxergar o Vaticano não apenas como um lugar sagrado, ainda que possa sê-lo, ou um lugar em que todo mundo é bonzinho, ainda que os que por lá trabalham possam sê-los. Como qualquer outro Estado no mundo, a sede da Igreja Católica tem suas entranhas do poder, ambições, diferentes correntes políticas e, claro, hierarquia.
A exceção é que, ao contrário da maior parte das nações, lá o sistema vigente se assemelha a uma ditadura, com ares de rigidez extrema. Não consigo encontrar outra nomenclatura para um lugar cujas eleições são indiretas e cujos eleitores foram (e são) escolhidos a dedo por uma única pessoa, o papa, o que facilita a continuidade da sua, digamos, metas de governo.

Contra a democracia também é o modo como os fatos se sucederam nesses últimos dias. Convenhamos, a eleição de Bento 16 ficou fácil demais para ele, digna de causar inveja ao presidente Lula, que já começa a se preocupar com sua reeleição. O que dizer de um pleito em que um dos candidatos favoritos pode fazer campanha antes de começar as eleições, como a homilia feita por Ratzinger antes do início do conclave, na qual, ao apresentar sua “plataforma de governo”, pregou conservadorismo para um grupo de 115 eleitores-conservadores. E mais, como explicar uma lei do silêncio dos cardeais à imprensa ordenado pelo mesmo Ratzinger, de forma a evitar que, durante o conclave, eles tomassem conhecimento das especulações e opiniões, muitas das quais contrárias ao seu nome e ao próprio papado do eu ex-chefe, João Paulo II?.

Também não consigo classificar de outro modo um Estado que, à exemplo de qualquer Estado totalitarista que existiu no século 20, dizimou facções contrárias ao que seu chefe de governo pensava, caso das teologias surgidas a partir dos anos 60 nos países do Terceiro Mundo, produzidas as partir do exercício da pastoral que tinha ligação com as demandas sociais. Aqui, destaca-se a Teologia da Libertação, que ligava o marxismo à religião. Ainda que, de fato, pareça-me discutível até onde essa brasileiríssima teologia é religião ou é proselitismo político da esquerda latino-americana.

Isso porque, assim como a maioria das teologias emergidas dos países pobres como forma de combate à miséria, a Teologia da Libertação prega a emancipação do homem e sugere a marxista luta de classes, do pobre contra o rico, o que seria anticristão, já que almejaria a destruição de um “semelhante”. Porém, optar por sua simples eliminação por meio de punições à pessoas de alta espiritualidade e ligadas à luta pela justiça social revela um apreço pela mordaça, mais uma característica das nações anti-democráticas.

Ademais, o totalitarismo vaticano lembra sim os uníssonos e poderosos Estados de George Orwell (Tanto o dos porcos, em “A Revolução dos Bichos”, como o do Grande Irmão, em “1984”), que abertamente declaravam que “a verdade está conosco” e que o seus chefes de Estado tinha o dom da infabilidade.

Críticas à parte, a eleição de Ratzinger é, antes de mais nada, a escolha por uma estratégia de Estado, iniciada na “gestão” anterior, mas que tende a ser asseverada neste papado, uma vez que Bento 16 é muito mais conservador do que seu antecessor. Ela consiste em intensificar a dogmatização da Igreja e a volta à espiritualidade e às tradições. Um reforço na lapidação da alma.

Haveria a opção por uma Igreja mais aberta ao mundo moderno, despreendida de tradicionalismos e aberta ao diálogo sobre os mais diversos temas, desde o celibato dos padres até a aceitação da utilização de métodos contraceptivos.

Porém, não foi essa a opção. Não é à toa que, além de ter sido cão de guarda do conservador João Paulo II, Ratzinger é da Europa, lugar onde os problemas da fé são mais preocupantes, uma vez que a questão é que não só que as pessoas não crêem que a Igreja de São Pedro não é mais seu lar espiritual. Pior. Elas não mais crêem em mais nada, vivem sem deuses, desgarrados de qualquer ligação com o espiritualismo. Enfim, uma espécie de neopaganismo e neoagnoticismo, decorrentes, por que não, do materialismo exarcebado em que vivem. Nesse sentido, Ratzinger, fruto de uma teologia primeiro-mundista, ensinada na universidade, é o homem ideal se o que aqui se pretende é mais resgatar quem perdeu a fé em qualquer religião do que em quem perdeu a fé no catolicismo.

O caminho, no entanto, não parece ser esse. Esperava-se por um papa pastor, inspirado no missionarismo cristão e que conciliasse a preocupação com a consolidação da fé nas pessoas com a defesa dos necessitados e a inserção nos problemas atuais da humanidade.

Há, todavia, esperança. Ratzinger no início de sua sacra carreira, foi progressista e um influente teólogo na elaboração do Concílio Vaticano II, elaborado entre 1962 e 1965 e responsável pelo “aggiordamento” (modernização) da Igreja. Mudou de lado em 1968, quando estudantes extremistas cristãos atacavam a religião nas universidades por acharem que ela era a ponta de lança das injustiças capitalistas. Passou a acreditar que os valores são imutáveis, independem do mundo em que vivemos e que as religiões que se aproximam dele são superficiais.

Ainda que não haja essa improvável reviravolta conceitual no alemão, a opção escolhida pelo Vaticano pode dar certo e não é de todo condenável. Como disse acima, trata-se de uma estratégia de Estado. A mim, cheira a erro e pode se reverter em algo pior. Em se considerando as previsões de São Malaquias, o santo que no século 12 previu as características de 113 papas, os tempos para a Igreja Católica tendem a piorar. De acordo com esse santo, o lema do próximo papa (sim, o próximo, depois do Bento) será “In persecutione extrema”, que indica perseguições à Igreja. À título de curiosidade, São Malaquias previu o papado de Bento 16 com o lema “Gloria Olivae”, que significa grandes teólogos e intelectuais da Igreja, características reconhecidas em Ratzinger. É esperar para ver se tamanha grandeza intelectual fará da Igreja uma instituição atrativa ou dispersiva.

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