8.10.05

A fé move rios

Caio

Em se considerando que valeu a lógica de que é melhor matar um projeto do que um homem, a greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, acabou relativamente bem para o governo, que, ainda que tarde, soube dar a relevância que o caso pedia e deslocou um dos seus principais ministros para Cabrobó (PE) para propor o adiamento do diálogo sobre a transposição do rio São Francisco. Também acabou bem para o bispo, que não matou a si próprio e, de quebra, deu sobrevida às discussões das obras.

O projeto, aliás, é uma babel. Afastado do eixo político-econômico do sul do país, nada sabemos e tampouco queremos saber sobre o projeto, já que por aqui temos água e outros problemas para resolver. Mas, para o governo federal, é um projeto essencial. Ali estão em jogo o futuro político do nordestino Ciro Gomes e o grande projeto social do PT para a região mais pobre do país.

Política aparte, o que chamou mesmo a atenção no episódio foi a capacidade que um jejum religioso teve de mobilizar milhares de pessoas que mal sabem quem é Ciro e PT, muito menos o que significa transposição. Peregrinaram pelo sertão nordestino em busca de algo que não sabiam, mas que queriam, visto que movidos por uma fé cega que lhes direcionavam diretamente ao bispo, o candidato à martir que poderia lhes fornecer não mais que uma benção, uma atenção, uma voz.

O processo ali ocorrido foi semelhante ao da formação dos outros mitos regionais, como Padre Cícero e Antonio Conselheiro. Imersos na miséria que os faz ignorantes, suados e sofridos sob o sol escaldante, o cenário pobre ao qual a parte rica do país pôde acompanhar com emoção contagiante contrapunha com a luta solitária de um homem letrado, o bispo, apoiado por uma massa em busca do seu Dom Sebastião, completamente desconectada com a causa da luta dele, mas que, mesmo assim, chegaram até a, ao seu lado, iniciar também um jejum. Erro, pois, o bispo dizer que os "letrados" não entendiam a sua luta, apenas o "povo simples". Oras, esse "povo simples" mal sabia o que fazia lá. Rezavam, louvavam, como fazem sempre, eis que a saída para a vida ingrata que levam. Carência de mitos de um povo, pois.

O que é mais correto dizer é que qualquer um entende a luta do bispo, dentro, evidentemente, de suas realidades. Se aos sertanejos há uma intensa paixão, no sentido bíblico do termo, aos letrados, de uma forma geral, há respeito pela bravura de passar dez dias sem comer, apesar do desinteresse pela causa. Isso, claro, se considerarmos parte desses letrados, já que muitos assistiram ao espetáculo da devoção como uma novela das seis, sem os toques da dramaturgia global, o que, na verdade, até pode ter desagradavel, já que muito pobre junto não enche os olhos de ninguém. Ou enche. De desgosto.

A greve de fome, como qualquer forma de protesto, é válida. Ela pode até ter ares de uma arrogância pacífica, haja vista que, levada até o fim, alguém morre, mas deixa a grande derrota para o adversário. Nesse sentido, cabe questionar o posicionamento de parte da Igreja ao condenar a atitude. Essa conversa de que ninguém é senhor da própria vida merece uma boa dose de relativismo, ainda mais quando se sobrepõe à essa vida a causa que a sustenta. Assim, para pessoas que têm uma motivação a lhes conduzir, por vezes maior que qualquer outra coisa, até mesmo a própria vida, vale dela abdicar.

Não tenho filho, mas não conheço um pai ou mãe que não daria a sua vida pela dos filhos. Transpondo-se isso para o bispo Cappio, que chegou a Bahia em 1974 só com a roupa de frei e o hábito de franciscano _sequer tinha documentos, o que fez com que a ordem franciscana confirmasse sua identidade, é compreensível sua atitude.

É direito da instituição religiosa questionar os atos de alguém de alto cargo como um bispo, mas a instituição também deve ter a humildade de delimitar e se perguntar até onde quer e pode chegar sua influência. A Igreja, perita em marketing há 2.000 anos, deve reconhecer a greve de fome do bispo com esse mesmo efeito marqueteiro. Ele conseguiu chamar a atenção para os supostamente esquecidos nos debates da transposição do rio São Francisco, e surtiu efeito, com o adiamento da execução da obra. Sua luta foi em vão? Evidente que não.

O quanto o governo cederá em relação ao projeto original ainda é dúvida. Alguns movimentos sociais, como o MST e a Comissão Pastoral da Terra já reivindicam a realização de um plebiscito sobre o projeto, que seria uma solução para o intenso confronto entre defensores e opositores do rio. Atualmente, dois projetos referentes a um plebiscito sobre a transposição tramitam no Congresso. A dificuldade maior será atrair atenção nacional para um projeto regional. Nem greve de fome conseguirá.

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