22.9.10

Do fundo de pensão à feira livre

Por Caio Junqueira, de Vitória, Valor Econômico, 21/09/2010

A candidatura de um postulante à Câmara dos Deputados novato nas urnas nunca antes havia sido tratada com tanto rigor estratégico e demandado tamanha atenção da cúpula de um governo e do partido político que o comanda. Do presidente da República ao ex-chefe da Casa Civil, do ex-poderoso ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo até a candidata oficial a presidente, todos opinaram sobre a estreia nas urnas de Guilherme Lacerda, presidente da Fundação dos Economiários Federais (Funcef), o bilionário fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal.

Deu empate. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-chefe da Secretaria de Comunicação Luiz Gushiken, foram contrários. Para Lula, Lacerda enfrentaria dificuldades pela falta de apoio do governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, do PMDB, e do prefeito de Vitória, João Coser, que, embora petista, integra um grupo interno adversário ao de Lacerda. Gushiken avaliou que o pré-candidato poderia fazer mais pelo governo com os R$ 40 bilhões de orçamento da Funcef do que sendo mais um entre os 513 deputados da Câmara. Em outra frente, José Dirceu, o homem forte do primeiro mandato de Lula, estimulou-o, fazendo coro aos anseios da candidata oficial a presidente, Dilma Rousseff, que alegou haver a necessidade de bons quadros no Legislativo em seu mandato, se vencer. Acabou convencendo Lula, que avalizou o slogan em que até Gushiken deu palpite: "O deputado federal do Lula".

Com o componente político bem desenhado, faltava o fator financeiro. Iniciou, com um auxiliar, os contatos com empresários, que passaram a despejar recursos em sua campanha. Na segunda parcial da prestação de contas divulgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Lacerda declarou ter arrecadado R$ 964 mil, mais que o dobro do segundo que mais arrecadou no Estado. Um terço desse valor saiu diretamente de pessoas jurídicas, ao passo que os outros dois terços foram repassados pelo partido. "Sempre tive muitos contatos com empresários em decorrência dos cargos que ocupei, mas não quero comprar a eleição. Minha arrecadação é alta porque todos os recursos são contabilizados", afirmou Lacerda ao Valor, durante um intervalo de sua puxada agenda de campanha.

Ele pede voto a quem passa pela sua frente. Sua estratégia é fazer uma campanha "de guerrilha": movimentar-se por todos os lados e atacar em todas as frentes. Apresenta-se: "Meu nome é Guilherme Lacerda, sou candidato a deputado pela primeira vez, aqui está minha trajetória, sou ligado ao Lula e a Dilma. Se você achar que eu mereço, vote em mim, se não, não precisa".

Lacerda também sobe os morros capixabas, frequenta eventos de pequenos comerciantes e recorre ainda a uma antiga estratégia dos tempos da gênese petista: a panfletagem junto ao operariado. Na semana retrasada, foi às 7h até o refeitório da Metalúrgica União, uma das principais fornecedoras da Petrobras e que também tem contrato com a Vale, na qual a Funcef tem participação.

Falou a cerca de 250 funcionários sobre a origem simples no interior de Minas Gerais ("Trabalho desde os 12 anos"), realizações na Funcef ("Elevei o orçamento de R$ 9 para R$ 40 bilhões e participação em mais de 100 empresas"), sua maior necessidade ("Preciso tornar-me conhecido"), promessas ("Me comprometo a prestar contas do meu mandato pelo menos duas vezes por ano") e concluiu: "Meu lado é o dos trabalhadores e excluídos, mas não vejo problemas em me relacionar com empresários e grandes lideranças".

Dentre essas, a mais importante é José Dirceu. A relação é antiga, mas se intensificou depois que o ex-ministro assumiu a presidência do PT, em 1995. Naquele ano, Lacerda integrava a equipe de um dos primeiros governadores petistas do país, Vitor Buaiz, do Espírito Santo, eleito em 1994. O governo enfrentou turbulências com os petistas durante todos os quatro anos de gestão, principalmente com a base sindical, já que Buaiz teve dificuldades para pagá-los em dia. Presidente do partido, Dirceu era presença frequente no Estado para mediar a situação.

Lacerda participou da gestão Buaiz primeiro como diretor de Operações do Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), depois como secretário de Planejamento. Foi sua segunda participação em governos. Antes, atuara como secretário-adjunto de Indústria e Comércio de Belo Horizonte, na gestão de Patrus Ananias. Quem o recomendou foi Luiz Dulci, atual secretário-geral da Presidência da República, que o conhecera na militância do movimento sindical mineiro ligado à educação, uma vez que Lacerda lecionava em Juiz de Fora.

Após o governo Buaiz, Lacerda voltou a ter relação mais próxima com Dirceu durante a eleição de Lula, em 2002, quando coordenou a campanha do petista no Espírito Santo. Com a vitória, aguardou por semanas um convite para integrar o governo, que não vinha. "Eu queria ir para a Caixa Econômica Federal. Na verdade, queria trabalhar em qualquer cargo no governo, mas ninguém me chamava. Aí o Jorge Mattoso [economista, presidente da Caixa no primeiro mandato de Lula] me convidou para a Funcef". A relação com Mattoso vem desde a campanha petista de 1989, quando atuaram na elaboração do programa econômico petista, ao lado de Aloizio Mercadante, com o qual Lacerda se relacionara no doutorado em economia na Unicamp, no final dos anos 80.

Ao lado de Sérgio Rosa na Previ (fundo dos funcionários do Banco do Brasil) e de Wagner Pinheiro na Petros (fundo dos funcionários da Petrobras), fez dos fundos de pensão das três principais estatais do Brasil grandes investidores no setor de infra-estrutura e instituições poderosas para a política.

A crise do mensalão em 2005, apesar de ter-lhe dado "dor de coluna e crises de choro", não o afastou da Funcef. Foi de lá que assistiu, indignado, a cassação de Dirceu na Câmara dos Deputados. A retribuição ao apoio pode ser medido agora. Dirceu esteve em Vitória no final de agosto para participar de uma plenária em apoio a sua candidatura e de um "jantar-palestra" com empresários. Em um dos eventos, Dirceu lacrimejou quando Lacerda afirmou que "o dia 1º de dezembro de 2005 [data da cassação de Dirceu] deveria ser considerado o Dia Nacional da Injustiça".

Lacerda avalia que o apoio do chamado "núcleo duro" do primeiro mandato de Lula a sua candidatura é superdimensionado. "Não é que estejam investindo em mim. Não tenho essa relação tão privilegiada. Sou apenas um cara disciplinado politicamente, embora não seja um cordeirinho".

Sobre o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que integrava o núcleo duro nos quatro primeiros anos da era Lula mas rivalizava e disputava poder com o grupo de Dirceu, Lacerda evita falar: "Não quero falar do Palocci porque sei o que o Mattoso passou". Uma referência ao "caso Francenildo", caseiro que teve o sigilo bancário na Caixa quebrado após acusar Palocci de fazer reuniões com lobistas em uma mansão em Brasília. O Supremo Tribunal Federal, onde o processo tramita, recebeu a denúncia contra Mattoso, presidente da Caixa na época do escândalo, e arquivou contra Palocci, então ministro da Fazenda.

As críticas ao ex-ministro, hoje um dos coordenadores da campanha de Dilma, são evitadas no aspecto pessoal, mas diretas na área econômica: "A gente ia na Fazenda [ministério] parecia que estava chegando no governo Fernando Henrique, ou pior até. Foi muito conservador, carregou na taxa de juros". No entanto, ele avalia que Palocci terá um papel relevante no governo Dilma, embora aposte que fora da Economia: "na área política ele será importante no governo".

Com a queda de Dirceu e a posterior ascensão de Dilma à Casa Civil, foi com ela que passou a ter maior contato -também a ser alvo de algumas das famosas cobranças da ex-ministra. Em uma delas, como presidente do Conselho de Administração da Brasil Ferrovias, posteriormente adquirida pela América Latina Logística (ALL) - que o mantém no cargo até hoje - Dilma lhe cobrou maior andamento das obras nos 260 quilômetros do trecho entre Alto Araguaia (MT) e Rondonópolis (MT), ao que Lacerda respondeu: "Ministra, eu levo o cavalo até a poça d'água. Depois, para beber, é com ele". "Então você dá a ele um canudinho para tomar a água", respondeu Dilma. A relação de ambos é bem próxima e, além dela, outros petistas da cúpula nacional têm incentivado Lacerda, como o presidente do PT, José Eduardo Dutra, e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, que gravaram vídeos para a campanha.

É justamente esse apoio da cúpula que tem incomodado o PT capixaba, que critica a candidatura Lacerda por ter sido construída "de cima para baixo", sem o apoio das bases do partido no Espírito Santo e em confronto com candidaturas já tradicionais, em especial a da deputada Iriny Lopes. Deputada federal desde 2002, é considerada a principal adversária de Lacerda pois, estima-se, a coligação costurada por PMDB, PSB e PT deve eleger sete dos dez deputados do Estado: três pemedebistas, três pessebistas e apenas um petista: Lacerda ou Iriny.

Essa perspectiva deflagrou uma rivalidade interna inédita, cujo sinal mais eloquente é o licenciamento do prefeito de Vitória, João Coser (PT), para ajudar na campanha petista. Aliados de Lacerda apontam nessa saída a tentativa de angariar votos para Iriny em detrimento de Lacerda. O prefeito, porém, diz que sai não para fazer campanha nas proporcionais, mas "para levar a campanha de Dilma ao interior".

Reeleito no primeiro turno de 2008 com mais de 65% dos votos, Coser integra a corrente Mensagem ao Partido, maior opositora da Construindo um Novo Brasil (CNB) de Lacerda, à qual a Articulação de Esquerda de Iriny também se opõe. A Mensagem tem como principal expoente o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, opositor de Dirceu, que é um nome importante da CNB. "Iriny trabalha há muitos anos conosco. Meu voto nela é declarado, mas sem desmerecer os outros candidatos", afirma o prefeito. Sobre Lacerda, diz que "em 2006 e 2008 construiu poucas relações no PT para quem tinha projeto político de médio prazo".

A oposição interna fez com que Lacerda buscasse apoio em outras legendas. Muitas de suas parcerias são com candidatos a deputado estadual de outros partidos, que negociam apoio político em troca de ajuda financeira. O custo médio é de R$ 30 por voto em potencial. Funcionários ligados à Caixa, por meio da Associação dos Gestores da Caixa (AGCEF), também declararam apoio a ele.

Seus opositores, assustados com o tamanho de sua campanha, afirmam que Lacerda utilizou-se de seu cargo na Funcef para capitalizar sua candidatura. Neste ano, por exemplo, o fundo assinou contrato com a empresa capixaba de alimentos Tangará Foods, pelo qual adquiriu por R$ 136 milhões o parque industrial da empresa.

Lacerda licenciou-se da presidência da Funcef às vésperas da campanha, mediante um pedido do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e da presidente da Caixa, Maria Fernanda Ramos Coelho. "Eles não queriam abrir um processo sucessório na Funcef em meio às eleições nacionais". Diz que sofreu críticas por licenciar-se, mas que preferia o afastamento. "Licenciado não recebo meus vencimentos. Afastado, entraria na 'quarentena'".

Seus adversários também afirmam que seu interesse real é, com os votos que conquistar, credenciar-se para as eleições municipais de Vila Velha em 2008. Maior colégio eleitoral do Espírito Santo, há dois anos participou das prévias petistas para se lançar prefeito, mas perdeu. Outros afirmam que seu alvo é calibrar-se para algum ministério de um eventual governo Dilma, o que já tem sido especulado pela imprensa capixaba. "Não estou fazendo isso com essas perspectivas. Precisava ver como era passar por uma eleição, embora ache que ela pode me credenciar para outros cargos. Mas não é meu objetivo principal".

No Parlamento, afirma querer comprar a briga do veto à fiscalização e controle do TCU, uma luta em que já estão Lula e Dilma, além do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, entre outros. "Não pode o TCU querer mandar mais que Executivo, Legislativo e Judiciário. O TCU virou o quarto poder". Sobre as perspectivas para os fundos, diz que irá trabalhar para incluir a maior parte deles na rota de investimentos do país. "Hoje os fundos têm uns R$ 600 bilhões de recursos, mas muito concentrados em alguns poucos. Tem que ter um jeito desses fundos menores passarem a se interessar por esses investimentos maiores e o caminho inicial para isso é reduzir a taxa de juros", afirma. Para levar à Câmara suas idéias, calcula precisar de 100 mil votos. "Sou uma incógnita. Posso tanto ter uma avalanche de votos como ir muito mal", afirmou.

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