4.11.05

Consultas populares e seus desafios

Caio

Com a vitória do ‘não’ no referendo do último domingo, somam-se três os resultados em que o eleitorado nacional, convocado a deliberar diretamente sobre temas nacionais, decidiu pela manutenção do status quo. No primeiro deles, em 1963, a população rejeitou o parlamentarismo, regime instaurado dois anos antes. Trinta anos depois, novo plebiscito e a opção pela manutenção da república presidencialista como, respectivamente, forma e sistema de governo. No domingo, a maioria dos brasileiros novamente preferiu não mudar as regras vigentes e permitiu a continuação do comércio de armas no país. Embora não se possa dizer que a população tenha um caráter conservador, visto que nas ocasiões em que consultada, nada alterou, esse fato está longe de ser algo depreciador ou restritivo do instrumento das consultas populares, em especial ao se considerar que, nas três vezes, o fator conjuntura sócio-política foi determinante nos resultados.

Explica-se. Nos anos 60, o parlamentarismo foi visto pela população como um artifício golpista para diminuir os poderes do então presidente de esquerda João Goulart. Em 1993, a facilidade da queda no ano anterior de Fernando Collor de Mello derrubou o principal argumento dos parlamentaristas de que no presidencialismo não se derruba presidente. E, neste ano, a falta de uma eficiente política de segurança pública em todas as esferas de governo aliado ao atrelamento do voto “sim“ ao governo federal, imerso em denúncias de corrupção, também colaboraram para manter a linha anti-reformista do eleitorado.

Como é patente que qualquer ida de cidadãos às urnas, para votar ou para “opinar”, é naturalmente contaminada pela conjuntura, o que se concluiu é que a não-alteração das regras vigentes pela terceira vez no país não significa que nas próximas vezes o comportamento será o mesmo, tampouco que o instituto (plebiscito ou referendo) será banido. Muito ao contrário. Em se considerando a quantidade de projetos sobre consultas populares tramitando no Congresso, os brasileiros podem se preparar para mais consultas em assuntos diversos: aborto, financiamento público de campanha, voto em listas partidárias, criação de Estados, unicidade ou pluralidade sindical, redução da maioridade penal e transposição das águas do rio São Francisco (essa, específica para os estados afetados). Há temas específicos como a escolha do valor do limite máximo dos benefícios concedidos pela Previdência entre R$ 2,4 mil, R$ 3,6 mil e R$ 4,8 mil, ou sobre a forma como devem ocorrer os processos licitatórios da Agência Nacional de Petróleo.

O número de propostas e o seu caráter genérico revelam o sentimento no Congresso de que a democracia participativa ganha força no país, em um movimento que segue o de outros países, em especial da América Latina. A partir da redemocratização na região, os vizinhos Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai e Venezuela recorreram à população para discorrer sobre temas importantes como privatização de estatais e permanência de seus chefes de Estado. No Brasil, atualmente, apenas o Congresso pode convocar a população para plebiscitos e referendos, mas há projetos que pretendem flexibilizar essa regra. É o caso da proposta de emenda constitucional do deputado Babá (PSOL-PA), que dá à população a possibilidade de auto-convocação mediante a assinatura de 1% do eleitorado nacional. Outra idéia, também defendida pelo PSOL, é a do plebiscito revogatório de mandatos, pelo qual a população opta em manter ou retirar do cargo o governante.

Este arsenal de projetos de consultas e sobre consultas endossa a idéia de que, mesmo com a vitória do “não” que, mais uma vez, manteve uma norma, as consultas populares tendem a aumentar no país. Um paralelo pode ser feito com a derrota da Constituição Européia no referendo realizado em maio deste ano na França. Da mesma maneira como aqui, houve uma força inicial do “sim”, mas o desgaste do governo Chirac impulsionou o “não”, que recebeu 55%. Nem por isso o instituto da democracia direta está sendo posto em questão na Europa.
No entanto, há resistências às consultas populares que podem frear esse processo de amadurecimento. Sabe-se que propostas que envolvem maior representação e participação popular nas decisões do país são, ainda que de forma velada, rejeitadas por boa parte dos parlamentares, que ficam omissos ao tema, faltam em reuniões das comissões relacionadas ao tema, de forma a evitar que o quórum necessário seja constituído. Um exemplo desse tipo de atitude ocorre na Comissão Permanente de Legislação Participativa. O órgão, criado em 2001 para avaliar e encaminhar outro item da democracia participativa, os projetos de lei de iniciativa popular, sofre desde o início com o descaso da maioria dos deputados e partidos. Como é “feio” ser antidemocrata, a oposição, como acima dito, é camuflada e manifestada, por exemplo, na distribuição das quotas partidárias para as comissões permanentes da Casa. Os deputados nunca querem participar do órgão, encarando a missão como um castigo.

Ressalte-se que as resistências à democracia participativa também vêm daqueles que são, em tese, os maiores beneficiados desses instrumentos: os eleitores. Vários depoimentos de populares pôde ser vistos na mídia acusando o Congresso de jogar para a população uma responsabilidade que “não lhes cabia”. Isso resulta, sem dúvida, não do instrumento da consulta popular em si, mas da falta de amadurecimento político da média da população brasileira e também da forma despropositada com que o primeiro referendo do país foi jogado ao país, com conflito de dados, discussão rápida e sem que, nem os “esclarecidos” soubessem ao certo o que resultaria de uma ou outra opção. Tudo ao final ficou restrito a um jogo de interesses e sem qualquer menção às causas de fundo da violência, como a falta de uma educação pública decente, a marginalização, o preconceito, desemprego e a injustiça social.

Além da imaturidade política da maioria dos eleitores e da falta de vontade do aprofundamento do debate e do cerne dos problemas, outros fatores colocam em xeque a eficiência das consultas, como a delegação da decisão de temas importantes a uma maioria momentânea que pode ter uma opinião cambiante sobre determinado assunto. Também preocupante é a atuação de poderosos grupos econômicos no direcionamento dos resultados, fato muito visto nos Estados Unidos, em que a força do capital é altíssima e determinante nas consultas populares. Caso da Califórnia, Estado que usa com freqüência essas consultas. No próximo dia 8, seus cidadãos vão às urnas para decidir sobre diversos temas, dentre os quais a liberação de alguns medicamentos. Não precisa muito esforço para imaginar o lobby que a indústria do setor montou em prol da aprovação do que lhe interessa. Há ainda o personalismo de alguns governantes que, sob uma aparência democrata, mobilizam massas por meio de consultas para perpetuar o que bem quiserem, em uma forma de autoritarismo democrático.

Há, evidentemente, um mito de que quanto mais o povo for às urnas mais forte será a democracia. Isso, porém, deve ser visto com ressalvas. Uma democracia forte é feita com as salvaguardas necessárias que impeçam que outras forças que não os cidadãos se façam presente, como o dinheiro, a ignorância ou o ego. Saber balancear as situações de forma a preservar a vontade da maioria sem prejudicar a minoria dissonante é a virtude de um país democrático. Estamos longe disso, mas o amadurecimento só virá quanto maior e mais freqüentes forem os debates.

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